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quarta-feira, dezembro 27, 2006

Meus votos para 2007


Na fome
Degustação
No desejo
Carícia

Que seja devorar
o exercício da língua

É preciso saber beber
daquilo que mais nos revele
O maior órgão do corpo
é a pele

(Este é o último post do ano.
Viajo e retomarei aqui no final de janeiro.
Desejo a todos que vierem a visitar este espaço neste intervalo
muitas flores e frutos no ano de 2007 )

(imagem: Bitcho desenhado por Fernando Chuí e Marcia Tiburi)

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Herói é humano


Quando eu era criança eu passava todo o tempo desenhando super-heróis.
Eu fazia assinatura das revistinhas da Marvel e aguardava ansioso pelos gibis SuperaventurasMarvel, Homem-Aranha, Heróis da TV e Hulk, além de comprar na banca de jornal as séries do Batman e do Super-homem.
Para quem não é formado por esta literatura, é preciso explicar de que se trata. É a arte seqüencial, definição do gênio Will Eisner, que flerta com o infantil e com o adulto ao mesmo tempo.
Esteticamente, as HQs de super-heróis também têm algo de paradoxal. Por um lado, elas se propõem a uma seriedade digna de uma Odisséia, e, por outro, apresentam-se com desenhos cheios de balõezinhos que tornam quase impossível a tarefa de se escapar do kitch. Seus desenhistas trabalham as figuras todas em proporções realistas e, não obstante, não conseguem escapar da sua caricatura de nanquim. Com o advento das graphic novels dos anos 80, criou-se uma legenda de que então as HQs finalmente assumiriam seu posto de arte de boa qualidade. Todavia, não acho que a tal qualidade estética da ditas HQs adultas fossem o maior legado das histórias de super-heróis. O cinema, sim, resgatou delas a sua essência, algo como o kitch-cult.
Toda HQ de super-heróis retrabalha, como evidencia o próprio nome, o mito do herói.
Recorro - mais uma vez - a Joseph Campbell que diferenciava as duas figuras públicas: o herói (figura pública antiga); e a celebridade (a figura pública moderna). Enquanto a celebridade se populariza por viver para si mesma, o herói assim se tornava por viver servindo sua comunidade. Todo super-herói deve atravessar alguma via crucis. Gandhi disse que, quanto maior nosso sacrifício, maior será nossa conquista. Como Hércules, como Batman.
Por trabalharem sob uma narrativa progressiva e cíclica, e serem tecnicamente mais ambiciosas do que as outras modalidades de HQs, as histórias de super-heróis se deslocaram de seu meio de revistas e jornais, aproximando-se muito mais das séries de TV e do cinema, mas sem perder seu mito pop. Talvez por isto as melhores coisas que o cinema comercial produz ultimamente sejam as adaptações das HQs de super-heróis.
O cinema nasceu comercial e, a despeito de uma série de diretores que conseguiram desenvolver o chamado cinema de arte, de Bergman e Fellini a Peter Greenaway e Almodóvar, é disto que se trata, uma imensa indústria de entretenimento. Não acho esta definição algo absolutamente depreciativo. Recordo-me de um gibi em que o Surfista Prateado dizia aos seres humanos: "A vida é imensa e complexa - acontece dentro e à margem dela mesma."
Toda HQ traz em si alguma coisa de industrial e marginal, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Os filmes de super-herói, ainda que transpondo essa cultura para a grande e famigerada indústria, realizam uma outra façanha, que provavelmente sem eles não ocorreria: a formação de novas mitologias reafirmando os mesmos ideais heróicos da antigüidade ao homem moderno. Fellini afirmou uma vez que Stan Lee, o criador da Marvel e de diversos heróis populares, era o Homero do quadrinhos.
Toda boa história de super-herói é uma história de exclusão social. Homem-Aranha é um Nerd, Hulk é um monstro amaldiçoado, Demolidor é um deficiente, os X-Men são indivíduos excepcionais, Batman é um órfão, Super-Homem é um alenígena expatriados. São todos símbolos da solidão, da sobrevivência e da abnegação humana.
Não se ama um herói pelos seus poderes, mas pela sua dor. Nossos olhos podem até se voltar a eles por suas habilidades fantásticas, mas é na humanidade que eles crescem dentro do gosto popular.
(Os super-heróis que não sofrem ou simplesmente trabalham para o sistema vigente tendem a se tornar meio babacas, como o Tocha-Humana ou o Capitão América)
O cinema de Hollywood tem a função de nos mostrar até onde alcança o inconsciente coletivo, o topo do lugar-comum, aquilo que a sociedade espera dela mesma (o que, às vezes, nos traz boas surpresas); e os super-heróis, hoje superstars, são mitos oriundos de experiências feitas em laboratórios do submundo, a velha sub-arte das HQs, a santidade surgida do lixo. Hulk e Homem-Aranha são seres que criticam a inconseqüência da ciência, com sua energia atômica e suas experiências genéticas. Os X-Men nos advertem para a educação inclusiva. Super-homem é aquele que mais se aproxima de Jesus Cristo - e por isto talvez seja o mais popular de todos, mais popular do que os Beatles, que um dia disseram serem mais populares que Ele - em seu sacrifício solitário em defesa dos seres humanos, mas também tem algo de Aquiles, com seu calcanhar que é a kriptonita. Humano e super-herói, como Gandhi.
Não houve nenhuma literatura que tenha me marcado mais do que essas histórias em quadrinhos. Eu raramente as leio hoje em dia, mas quando assisto a bons filmes de super-heróis eu me lembro que todos temos um lado ingênuo e bom, que pode ser capaz de suportar a dor da solidão por um princípio.
Eu sempre me enterneço ao ver os X-Men, o Homem-Aranha ou o Super-Homem. Vejo diversas vezes, sei os diálogos. É verdade que há, entre esses filmes, alguns absolutamente lastimáveis; contudo, os filmes de super-heróis são a prova da sobrevivência deste mito em meio ao glamour e a indústria de "celebridades-miojo". Parafraseando o Surfista Prateado (e Deus queira que seja bem retratado nas telas...), é a negação do sistema, trazido dentro e à margem de sua grande indústria.
Tenho a raiva do Hulk, o mau-humor do Wolverine, a solidão do Super-Homem. Temos a tendência a atribuir nossos erros e defeitos à humanidade que nos comporta.
No entanto, vejo esses filmes e lembro-me que, ainda hoje, herói é humano.

(foto: desenho feito sobre quadro negro na sala do Menezes, meu pai; à frente, nós- 1987)

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Auto-retrato

Quem quiser me conhecer
Que venha como um turbilhão
Metralhadora, bala de canhão
Sonho, tempestade, vulcão
Epidemia, lambida de cão

Só não estranhe
os meus olhos de assombro
Só não recue
quando eu me esconder num manto

Eu terei a vida inteira
para lhe retribuir o espanto


(imagem: auto-retrato de Chuí, 1997)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Assassinato e Proteção: Um conto

Esta noite eu matei alguém.
Não era alguém que deliberadamente me fazia mal. Nem era sequer uma pessoa má. Tampouco era alguém concretamente, mas uma forma mal sintonizada no universo que se refletia em minha mente sob a imagem de uma pessoa. Esta forma agora se foi como fumaça se dissipando no ar, desenhando imagens que valem menos pelo que se revela e mais pelo que dela desaparece.
É preciso aprender a matar as pessoas. No terreno simbólico, é claro, não quero evidentemente incitar ninguém a qualquer ato de insanidade criminosa.
Mas sei que matar alguém sempre soa como algo terrível; e realmente o é.
Todavia, é como eu vi noutro dia em um filme em que o protagonista explicava sua serenidade ao outro personagem após um assassinato: “a coisa mais interessante de se fazer algo realmente terrível é que, depois de pouco tempo, você não se lembra de absolutamente nada”. Muitas vezes, é preciso fazê-lo - ser o agente de nossa própria leveza.
Praticamente todas as mágoas que guardamos de nossa história assumem alguma personificação, e o problema de não matar estas pessoas é que assim não conseguimos evitar o passado correndo nas veias a sua substância venenosa. Esta, sim, é uma condição horrível. Amigos de infância, professores, colegas de trabalho, namoradas, maridos, pais. Até mesmo com pessoas já mortas é recomendável o assassinato; nesses casos o cuidado com a precisão deve ser redobrado. Muitas destas figuras tornam-se, por vezes sem que a gente sequer desconfie, os nossos fantasmas pessoais; nos perseguem em todas as camadas do inconsciente, nos afetam em todos os setores da vida cotidiana.
(Há que se constatar que com certas pessoas torna-se inviável esta medida. Casos extremos como estupradores, pais suicidas e outras maldições; pessoas que, por terem outrora nos ferido tão gravemente, tornam-se proprietárias de certas regiões de nosso afeto, impossíveis de serem mortas por já nos terem matado. Já são nossos sócios constituintes, é fato, vêm pra todas as reuniões, têm influência em todas as decisões)
Falo de causar a morte de malditos menores, mas não menos letais. Eu poderia evitar palavras associadas à morte, usar de eufemismos como esquecimento, perdão, passagem a outro nível, mas qualquer uma delas soaria somente como paliativos diante do grande mal que seria deixá-los viver em nosso mundo. O ato consciente de agir e decretar a morte de alguém é indispensável em muitos momentos da vida.
O tempo é uma entidade que não abriga dois níveis desarmonizados, ou seja, uma pessoa do passado que teima em ocupar o mesmo espaço do presente. Gera uma espécie de curto-circuito afetivo, nos confunde os sentimentos. Para elas, só o cadafalso.
Quando eu digo que é preciso aprender a matar alguém é porque matar alguém é realmente um ato que deve ser realizado com toda a perícia e propriedade. Senão, acontece como nos filmes onde os vilões deixam os heróis para morrerem em situações hipoteticamente impossíveis de se sobreviver, mas eis que hipoteticamente não é efetivamente, e eles escapam sãos a salvos. Não se pode esquecer que nesse filme nós precisamos exercer o papel de um competente carrasco. A pior coisa de não se saber matar alguém é que esta pessoa permanece viva da pior maneira possível: como um morto-vivo.
Assombrando nossas casas, arrastando correntes em nosso inconsciente. Como quando se ataca diretamente aquele em quem se acredita estar nosso inimigo real. Ledo engano atacar a carne, eles são espíritos; nos castigam dentro da alma, cenário desta operação. Os fantasmas nos habitam sob muitos disfarces; a culpa é um deles, muito comum. A culpa não é comum nas pessoas que sabem assassinar seus carrascos, mas é muito presente naqueles que não souberam dar fim a seus corpos. Esses fantasmas também costumam surgir sob o capuz da vergonha, outro instrumento da fantasmagoria. O bom matador não tem vergonha, pois acredita na sina; a vergonha é sinal de crime imperfeito.
Dirão alguns que todo morto merece ser enterrado, uma pedra em cima e uma epígrafe para que não mais se levantem de lá após o ritual. Discordo, acho que não se deve enterrar um morto, pois isto seria uma boa maneira de se criar um cenário de terror; eles se levantam das tumbas cheios de terra no meio da noite. Enterrar significa deixar espaço para mágoas, rituais funebres, ossos, vermes, raiva, ódio reincidido, além da sensação de incompetência, de não ter feito a coisa direito. Fogo neles: queima-se o espírito, se possível com um fósforo de hotel barato, para nunca mais se lembrar de seu nome nem de nada. Com o espírito devem ser consumidas as cartas, destruídas as mensagens de e-mail, reduzido a cinzas o número no telefone celular. O bom assassino não deixa vestígios, muito menos para si próprio. O melhor da morte da pessoa é fazê-la não ter existido jamais.
Esta noite eu matei alguém. Fiz isto por uma única razão: eu decidi fazê-lo. Por vezes, a única etapa que nos separa desta alforria é a simples decisão. Mas para isso é preciso estar atento ao timing, o momento de maturação dos elementos que se manifestam à nossa volta. Há a hora certa. Pois quando se mata alguém, não há retorno.
Este você não volta jamais a maldizer, a repelir, a desejar o mal - mesmo frágil, à sua frente, você sequer o verá. Matá-lo é uma forma de altruísmo.
Extirpar a vida daquele que nos assombra é protegê-lo de nós mesmos.

(imagem: desenho-texto de Chuí)

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Sobre a minha timidez e o equilíbrio cósmico

Guardo no fundo do meu planeta uma raiz de sombras, uma voz, chamada timidez.
Há dias em que ela está mais à mostra, grave e acomodada feito as pernas do carvalho; noutros, é quase um sussurro imperceptível, um conjunto de finas veias a se misturarem na terra úmida. Ela muda o tom, a cor e a forma de acordo com as condições, afinal as sombras não sobrevivem sós, elas dependem da qualidade da luz alheia. Por vezes, ela se parece com um pudor vermelho; por outras, com uma antipatia cinza. Mas é tudo ilusão, pois é sempre a mesma criança azulada com medo de sair do útero, o mesmo velho marrom com vontade de retornar para lá. A mesma voz, sempre ali, a raiz inexata na base da minha fundação.
Em contrapartida, eu tenho uma outra voz, esta que canta. Pra piorar, exibo-me assim para platéias, tantas quantas quiserem me ver. Pessoas constantemente costumam se dizer espantadas com a minha face dramática no palco, bradando despudorada, em contradição com a minha presença cotidiana, quase sempre bastante sóbria e econômica, quase avarenta.
Em um mundo que padece da ditadura da histeria, sinto a timidez como um mecanismo psíquico que funciona sob uma lógica de equilíbrio cósmico. É como quando, em grupo de pessoas muito sintonizadas, uma delas precisa se retirar e todos sentem o desconforto, passam por momentos de re-harmonização. Eu sempre percebi que há um momento claro de desequilíbrio da ordem universal antes estabelecida. Regida por esta ordem, minha freqüência é constantemente alterada. Em ambientes onde há pessoas falando muito, tendo a calar-me. Faço isto como que para suprir a função de equilibrador da ordem social, para preencher o espaço dado com o vazio de palavras. Viro de costas pra acompanhar o movimento da sombra.
Como em uma orquestra ou em uma Big Band, onde os instrumentos por vezes devem desaparecer para dar lugar às outras vozes que virão fazer seu solo. Nos ambientes agitados, falo pouco, alguns poucos contracantos de oboé em resposta aos temas das melodias principais. Com pessoas quietas, torno-me expansivo, faço os violinos, os improvisos do saxofone. Com os velhos amigos, Free Jazz.
Minha timidez é dialética e musical.
Ao olhar para o mundo repleto de informações, tenho a sensação imediata de ser um instrumento invisível. Logo percebo que não é verdade, que há pessoas que sempre acabam notando minhas tonalidades. A consciência de um mundo interior tão cheio de eventos me traz para esta impressão de que, mesmo quando me olham, não me vêem. As pessoas mais sensíveis podem constatar que há algo por trás, mas não conseguem definir em palavras. É uma estranha autocrítica.
Quando estou assim, somente a luz me atravessa a consciência. É como eu gosto de ser visto. De tão lúcido, translúcido.
Na verdade, tento sempre cegar a verdade da inveja que possuo, assim como todo tímido, dos extrovertidos, dos evidentes, dos histéricos com seus holofotes de arco-íris. Invejo tudo o que não faz parte da minha transparência cósmica.
Deve ser por isso que eu canto. Para romper o silêncio do peito, a outra voz. Para arrancar do solo esta raiz, tal qual grito de mandrágora. Para confundir o tecido das sombras com a matéria dos astros.
De tão espacialmente tímido, acho que aprendi a me esconder na luz.

(imagem: desenho de Chuí)

quarta-feira, dezembro 06, 2006

fato quase


(Há cerca de dois anos, eu escrevi oito histórias que, juntas, formavam Contos do Mal, meu livro não publicado de contos . O mal não habita nenhum outro espaço que não o de nossas almas; é a entidade que nos proporciona a visão do bem. O conto que segue é o mais curto e o último desta série - uma visão sobre a fragilidade da vida apolítica.)
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Fato quase

Ela não sabia nadar, mas tentava, chacoalhava seus braços e se debatia em vão; vinha de muito longe, passeara por belos campos, presenciara a beleza dos céus e suas cores misturadas e do esplendor das matas impronunciáveis.
Era uma ironia que agora se encontrasse sob tamanha dificuldade; já havia passado por momentos muito mais complicados e perigosos e, por fim, escapado de tudo ilesa; todavia ali estava ela, encarcerada pelas águas, condenada pela sua própria estupidez. Como aconteceu, não vem ao caso, para que se buscar um responsável por um erro quando este mesmo se agarra às suas últimas forças em uma luta patética pela sobrevivência? O fato era que ela não resistira, como sempre, às tentações do desconhecido; para ela quase sempre fora impossível olhar o abismo sem se atirar nele.
Talvez fosse desprovida de medo - ou teria pavor? – e naquele instante fosse provavelmente o mero instinto de sobrevivência; não tinha, que se diga, algo que pudesse substancialmente ser chamada de um medo, contudo era incrível como o medo por vezes pode ser tão incrivelmente próximo a se confundir com o puro reflexo de defesa.
A sua vista estava cada vez mais turva, seu corpo boiava na imensidão aquática enquanto mantinha-se lutando pela vida ou quase isso. Embora o drama de sua luta pela sobrevivência seja o enfoque do que se escreve aqui, tudo ali não passava, na realidade, de um pequeno ou quase incômodo. Muitas vezes, a morte ou a guerra de outrem resulta, na melhor das hipóteses, em uma pequena coceira no canto da nuca alheia. Assim era, a rigor, a história de sua vida – não somente a dela, mas de muitos outros como ela – tratava-se de um afogamento, bem podia ser um atropelamento, um pisoteamento, um bombardeio, uma explosão, um enforcamento, um espancamento, um envenenamento.
Desprovida dos instrumentos necessários para a reflexividade, ela se fazia sempre banal e sua morte poderia ser até mesmo desejada ou meramente desprezível. Não porque era pouco visível - pois o era afinal - mas porque não havia em sua classe alguém que tivesse condições de erguer a voz contra tamanha brutalidade, o ser que se vê sem um grupo que o represente possui a maior de todas as solidões.
As águas tornavam-se cada vez mais agitadas, ondas ferozes lhe arrastavam e brincavam com seu corpo frágil como cachorrinhos brincam com brinquedos de borracha abandonados pelas crianças. Nada novo, aliás, em sua classe. Não há argumentos diante de um corpo a se encher de água, a braços que se desmantelam, à imagem de uma vida desesperada que grita os últimos movimentos para se manter, não há nada mais vivo do que um corpo lutando pra não ir embora, pois a vida nesta hora se revela no corpo e ainda mais no olhar daqueles que produzem seu cinema psicológico. Mas não havia olhar.
As ondas se formavam a partir da peça metálica que se movimentava naquela lagoa, entrava e saía levando e derramando pequenas partes da água daquele reservatório. Ela ia sendo carregada por aquelas marés a cada gesto brusco do instrumento, perdia suas forças; havia pouco a fazer, mas não desistia, pois que nem sabia o que era isso. A água estava quente, amarela e translúcida e boiavam ao longo daquela superfície líquida várias folhas verdes, vermelhas e marrons, além de estranhos objetos amolecidos a se esfacelar naquele meio. A sofreguidão com que começava a se movimentar o instrumento metálico fez com que as águas começassem a empurrar o corpo já quase inválido dela para as margens do lago poluído.
Uma pequena esfera verde acertou sua cabeça e após alguns segundos o empuxo das águas tragou-a para o fundo para depois arrastá-la para uma das bordas da estranha lagoa ou quase isso.
Seu equívoco havia sido evidente, separar-se de seu grupo. Deveria haver uma lei que protegesse os irreflexivos, que os proibisse de andar sozinhos – andar em coletivo é a única forma de sobrevivência dos seres desprovidos da qualidade reflexiva; ou ainda, a melhor forma de sobrevivência é a reflexividade, é a marca dos tempos modernos, afinal, pois a reflexão deixa sempre vestígios que servem para a real conexão com o grupo, livrar-se de ser incômodo é infinitamente mais complexo do que livrar-se de um incômodo, pensaria ela, se pensasse.
Por um instante pareceu que poderia escapar, mexeu, contumaz, as pernas e buscou se retirar das águas escorregando pela superfície lisa da margem onde fora levada, todavia a peça de metal voltou a remexer as águas e, quase que no mesmo momento, uma violenta onda caiu-lhe por sobre o corpo envolvendo-a e engolindo-a novamente para junto das coisas flutuantes.
De súbito, o instrumento cessou seu entra-e-sai e algo fatal aconteceu: ela agora era observada. Como se pudesse ter percebido, ela reunia todas as últimas forças e chacoalhava seus membros rapidamente; era desespero ou puro reflexo, mas era quase fuga. A enorme peça de metal agora vinha ao seu encontro, buscava seu corpo por entre as tantas substâncias que ali se misturavam. A primeira investida fez com que partes de água transbordassem dali, salvou-se por trás das esferas verdes. A segunda vez foi contundente, arrancou-lhe das águas num só gesto derradeiro; na verdade, partiu-lhe o corpo, deixando esfaceladas as partes que permaneceram na água.
O mundo poupa tolos, desvalidos, inocentes, idiotas. Mas não há perdão jamais para os seres que andam a sós e sem pensamento – e, sobretudo, aqueles sem representação de classes.
E por vezes o que restará do fato, ou do quase fato, e como as únicas provas de vôo, serão asas molhadas de um quase protagonista se desfazendo sobre a sopa.

(imagem:"Fly"colagem de Chuí)

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Show no dia 3


Domingo realizarei a última apresentação de 2006 do meu Mandacaru aqui em sampa.
Farei um show especial com o grande gaitista Guappo e com o velho cumpadre Guima na guitarra.
Aproveitando a formação, farei uma homenagem à minha velha fase de "bluesman" de há dez anos, já pensando em um projeto que ando discutindo com Guappo para 2007, unindo o blues americano ao nosso blues - a solidão dos velhos sambistas, a tristeza dos nossos Jecas, etc...