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quarta-feira, novembro 29, 2006

Diálogo sobre o Desenho IV


Mar,

Para discutirmos a respeito do Eu que se pronuncia no desenho não poderemos evitar a discussão específica sobre o Eu. Aqui a pergunta não é Quem sou eu?, mas O que é Eu?
O pronome da primeira pessoa do singular, a entidade metafísica de uma pessoa, aquilo que nos é próximo na mesma medida em que nos é impossivel tocar. Sem a pretensão de responder a esta indagação descabida, reflito sobre o Eu-desenho notando que Eu é a palavra que serve ao discurso de todos e não caracteriza ninguém. Por isto, cada desenho deve registrar no Eu o seu próprio enigma.
Curioso que Eu também sirva de prefixo para designar a idéia de bem ou do belo, como nas palavras eufonia(som agradável) ou eucrômico(que tem cor bela), ou tornando-se Ev, quando sucedida de palavra começada por vogal, como Evangelho - os testemunhos sagrados. O desenho deve revelar o Eu como idéia do que há de bom e belo em cada um que é capaz de vê-lo. Desenhar não é exclusividade dos que fazem, mas também dos que são capazes de enxergar. Um desenho não revela apenas o autor em si, mas sobretudo mostra alguma outra coisa essencial e intrínseca ao próprio ser humano. Seria todo desenho uma forma de Evangelho? O testemunho de seu lado bom e verdadeiro?
Isto me leva a pensar sobre uma das formas mais antigas do desenho e da pintura: o auto-retrato. No momento em que o artista se predispõe a representar a si próprio ele passa diretamente a uma espécie de pesquisa estética que pretende revelar não o que se expressa na superfície, mas o que há por trás da imagem. O retrato, até o advento da fotografia em si, teve um sentido de mero registro da imagem das pessoas que as encomendavam, da corte ao clero, das famílias aos governantes, e seu uso pragmático ocultava um outro sentido, o de instrumento do poder. Os governantes e suas famílias recebiam uma maquiagem pictórica para sempre parecerem dignos, poderosos e bonitos, e que hoje em dia só se alcança com a "magia" do Photoshop. Por outro lado, ao se retratarem, ficava clara a intenção de uma outra busca. Em frente ao espelho, vemos o avesso de nós mesmos, ou seja a idéia invertida que temos do Eu. Desta dobra surge algo mais importante do que a representação, a interpretação. Ou seja, segundo Nietsche, a única verdade possível.
O desenho revela, antes da beleza, esta verdade. Não a verdade do autor, mas do seu espectador. É como a figura do herói, que só é amado pelo povo por revelar o lado bom de cada pessoa. O resgate do olhar ao desenho é a salvação do próprio gesto para com a vida.
Joseph Campbell falou a respeito das duas figuras públicas; o herói, a figura pública antiga, amada por servir à sua comunidade; e a celebridade, produzida pela modernidade, desejada por servir somente a si própria. A propaganda, esta arma criada pela era Hitler, é a máquina onde se reproduzem as celebridades. Deve ser este o avesso do desenho, a propaganda, a imagem criada para esconder o que não se vê fora dos holofotes. A celebridade é a figura pública na era de sua reprodutibilidade técnica, diria Walter Benjamim, o filósofo que questionava a quintessência das obras de arte singulares como o desenho. A propaganda é o trabalho da celebridade, que tem sua vida nas vitrines da mídia para despertar a curiosidade da sociedade das imagens vazias.
Você não acha que o desenho, ao menos enquanto princípio, poderia vir a ser cada vez mais o trabalho do herói, ou seja, aquele que não pensa em fama e só vem a ganhar notoriedade quando reflete muito a sua comunidade? Ou a comparação é alucinada?
Entendo a posição de Vilém Flusser em ver no desenho um engôdo. Ao perseguirmos a forma, pela linha, pela sombra, pelas cores, buscamos sistematicamente o retorno à natureza. Nunca me esqueço de quando visitei o Museu de Mineralogia de Ouro Preto e da minha sensação, ao ir embora de lá, de inutilidade da arte. As formas atingidas pelo tempo sobre aquelas matérias primas eram a prova da declaração de Flusser. E todo documento de cultura parece ser o legado da inveja do homem diante da natureza.
A natureza que não erra jamais. No máximo ela segue um curso que nos ameaça. A falha é exclusiva àqueles que tem a intenção de chegar a algum lugar e se perdem no meio do caminho. A própria palavra falha, quando usada para a natureza, não expressa equívoco, apenas denomina um desenho que são os nossos olhos que projetam sobre a Terra.
Será que aquilo que nos salva desta condição é o momento em que não seguimos a correnteza, o ponto onde os seres humanos são invejados pelo céu - a possibilidade do erro?
Talvez para nós, a verdade de um caminho se revele no desvio de nossa intenção e a ignorância nos leve a novas fronteiras, e o tremor das mãos nos leve às linhas dos caminhos desconhecidos, nos desdobrando possivelmente naquilo que o físico Mário Schenberg chamou de realidade paralela.
Será o retorno ao desenho o retorno ao herói? O traço inicial da formação de uma sociedade mais conectada com seu desejo?
As pessoas desenham pouco, não por não serem capazes de fazê-lo, mas por terem perdido o desejo. E por temerem a dor desta descoberta, a dor o início, a dor da infância, a dor do herói. O desenho revela a fragilidade do conhecimento, da técnica, o medo do aprisionamento levado ao nível zero do conhecimento.
Por isto, é compreensível a fuga do desenho.
Antes da palavra delineou-se o impulso de um gesto primário.
Imagino os olhos de Deus e dos homens se abrindo, não necessariamente nesta ordem, antes de se encontrarem com o verbo; eles teriam visto as formas delineadas pelas folhas ao vento, pela água na encosta, pelo risco na parede, e teriam quiçá descoberto em si mesmos uma outra intenção, tão oculta quanto perigosa.
Em princípio era o desenho?

Beijos esfumados,

Fer

(imagem: desenho de Fernando Chuí e Marcia Tiburi)

segunda-feira, novembro 27, 2006

Milagres

..
Jantei o núcleo da Terra
...
Por entre as paredes maleáveis
de minha fortaleza
tive visões indescritíveis
prévias do inverno dos espíritos
onde desemboquei
escorrendo como a lava
que vinha junto
...
Menos diáfano
Latejei
E pari meu grito
.
(Chuí, 1997 - Fresta I)


O desenho e o poema acima voltaram-me à memória pois o fim-de-semana deu à luz a duas notícias celestiais.
Nasceu João, o filho do Guima, meu grande amigo e parceiro musical. Ele e Kika, a mãe, estavam reluzentes. João é lindo.
E o Bigatto, meu amigo há dezessete anos e também personagem muito presente nas minhas crônicas e HQs deste blog, acaba de engravidar, juntamente com Marianita, é claro, sua esposa.
Isto sem falar no Danilo Monteiro, outro ex-Dirty Darling, parceiro de sons e diálogos cancionistas, que também espera seu pimpolho para muito em breve.
Quando nasceu Vitório, filho de Davi, um outro amigo antigo, eu compus a canção cuja letra vai logo abaixo. É a minha saudação a estes seres inacreditáveis que nos lembram que a boa vida é feita para amar, se ligar e seguir bravamente.
Confesso que fiquei tocado por estas duas notícias tão divinas e nasceu em mim um desejo doce de beber do mesmo milagre.
Marcia só assobia.

DENTRO DO ESPELHO

DENTRO DO ESPELHO
TEM OUTRO MUNDO
TEM OUTRO MUNDO NO ESPELHO DO ARMÁRIO
E ESSE MUNDO É IGUAL AO SEU
SÓ QUE DO CONTRÁRIO

DENTRO DO RÁDIO
TEM UMA MÚSICA
TEM UMA MÚSICA NO RÁDIO DA COZINHA
E ESSA MÚSICA É TÃO BONITA
QUE ACHO QUE ELA É MINHA

MENINO LINDO
SEJA BENVINDO
VENHA QUE O MUNDO QUER BRINCAR
JÁ, JÁ O SOL VAI APARECER
PRA VER VOCÊ BRILHAR

DENTRO DO CHÃO
TEM UM PORÃO
TEM UM PORÃO BEM ESCONDIDO LÁ NO CHÃO
E LÁ TEM TUDO QUE DÁ PRA CABER
NA IMAGINAÇÃO

DENTRO DO CÉU
TEM AS ESTRELAS
TEM TANTA ESTRELA
EU POSSO VER DAS JANELAS
E ELAS BRILHAM NUM DESENHO TÃO LINDO
VEJO VOCÊ NELAS
...
MENINO LINDO
SEJA BENVINDO
VENHA QUE O MUNDO QUER BRINCAR
JÁ, JÁ O SOL VAI APARECER
PRA VER VOCÊ BRILHAR

sexta-feira, novembro 24, 2006

Wow, The Dirty Darling! - Crônica de uma Banda de Garagem IV


Se você fosse minha

If you were mine

I would shot you down

If you were mine

I would kiss you

People think I´m crazy

They said you´re gone

but you are here by my side

Dead wearing your leather boots

Oh, baby I thought that you were so cool

Oh, baby I thought that you were so good

But You

You are so Dirty, Darling

You are so Dirty, Darling

(DD, 1990)


If you were mine foi um dos primeiros rocks do Dirty Darling.
Um riff de guitarra e uma progressão de quatro acordes básicos trazidos pelo Danilo, uma letra em inglês - toda banda de rock começa a compor na língua do colonizador, é claro - cantada/falada pelo Bigatto e algumas alterações na forma feitas por este que vos fala.
A letra, se traduzida, diria "Se você fosse minha/Eu a jogaria no chão/Se você fosse minha/ Eu a beijaria."
- Essa música vai ser o carro-chefe do nosso primeiro disco! Nosso hit! - bradei eu, sonhando alto, no final do ensaio.
Curioso, o tempo presente em uma banda de garagem costuma ser conectado ao tempo futuro.
O desejo de constituir obra, tocar bem, gravar discos, fazer shows, fazer sucesso. Não há nada mais intenso do que o momento em que se deseja algo com muita força. Se for um desejo coletivo então, nem se fala. É como quando um casal se apaixona terrivelmente e passa a se projetar no tempo, pensa em construir a vida, pensa em criar filhos, pensa inevitavelmente na eternidade. O presente se torna luminoso como nunca pela sensação de poder se condensar numa coisa só com o futuro. É como numa banda de garagem. Só trocam-se as declarações de amor eterno pelos planos adolescentes de sucesso, trocam-se as noites de amor sem fim pelas tardes divertidas de ensaio. A banda de garagem se norteia pela ponte imaginária que dá passagem para os grandes shows que acontecerão, os discos que serão gravados, a obra que influenciará multidões, o reconhecimento da crítica, o sucesso, o sucesso.
O Dirty Darling também vivia ancorado ao futuro, mas provavelmente a um outro futuro.
A gramática nos explica que existem dois futuros, aquele que ainda virá a acontecer e um outro que acontece em um universo paralelo, o que somente poderia vir a ser - o futuro do pretérito. O DD possuía integrantes pouco alegres, pouco arrojados e mau humorados, assim não haveria de se esperar um grande otimismo daquele círculo de rebeldia discreta. Mesmo quando a matéria viva era o sonho, nos protegíamos nesse outro futuro, que traz a idéia de um lugar protegido pelo ceticismo.
A letra continuava com "As pessoas pensam que estou louco/Eles dizem que você se foi/Mas você está aqui ao meu lado/Morta com suas botas de couro(...)". Na mais pura tradição romântica, amávamos a mulher morta. O sucesso para nós vinha na figura de um amor inatingível. Sonhávamos intensamente, para dentro do limbo onírico.
Tocar nosso som era como se tivéssemos a plena consciência da lógica estrutural do mercado ao dizer à tão sonhada vida de rockstars: "Se você fosse minha/Eu a beijaria/ Mas você/ Você é tão suja, querida".
O nome da banda não veio da música, o refrão é que surgiu do nome da banda. O nome em si veio de um diálogo de um filme pornográfico, onde o sujeito diz - em contexto cênico que prefiro omitir aqui - para a moça "You are so dirty, Darling".
Era disto que se alimentava o DD, da cultura pop marginal, dos filmes sujos às bandas desconhecidas. Pois não houve jamais os grandes shows, os discos, tampouco o reconhecimento público - nada era público. E se não havia nada público, tudo ali era pessoal. Nosso sonho era coletivo e pessoal.
Esta constatação torna evidente para mim hoje uma verdade: o sonho é uma entidade viva em si para cada um e para todos, e não uma mera primeira etapa da realização de um projeto claro. Pois que, mesmo quando ele parece se realizar, nada é como se imagina; e mesmo quando tudo parece dar certo, nada acontece como o premeditado em nossas mentes.
Ou seja, mata-se um sonho no momento em que ele se realiza.
E para nós, que não tínhamos realmente a crença em nosso desejo, ficava nítida sua importância. Este desejo era a nossa melhor qualidade, pois o que há de mais belo em uma pessoa é aquilo que ela mais desejaria ser, se pudesse.
Aquele sonho que não se realizaria fundou nossa identidade.
Na última fase da banda, o Bigatto adquiriu em uma liquidação um calçado, um genérico do All Star, que nos levou a uma música nova, esta já em português, que dizia "Eu comprei um tênis/ Um sapato como eu/ É da marca RockStar".
Rock Star para nós nunca passou da sola de borracha ao rés-do-chão.
Dizíamos Se você fosse minha, nunca Quando você for minha.
O tempo presente do Dirty Darling sempre foi o futuro do pretérito.

(continua...)

quarta-feira, novembro 22, 2006

Diálogo sobre o Desenho III


Fer,

O aspecto primeiro enunciado na sua carta é o que mais me chamou a atenção diante da sua vasta teoria que eu gostaria mesmo de poder discutir. Infelizmente não será no curto espaço desta carta, mas nas seguintes quando teremos retomado muito do que ali ficou implícito, para que se torne explícito.
Talvez seja o efeito de minha leitura de Vilém Flusser que escreveu vários textos sobre desenho, estou interessadíssima na questão semântica e mesmo etimológica que envolve o desenho. Vc menciona um dado essencial: eu-desenho, como se o desenho carregasse o eu de cada um e o definisse numa folha de papel, quando desenho, desenho-um-desenho e isso faz nascer a obra, mas ao mesmo tempo, quando sou eu-que-desenho sou eu que nasço da coisa que criei. Para usar um “lacanês” válido: me torno meu significante, mas mais que isso, vou-junto do significante que crio: sou o significante.
Todo desenho, neste aspecto, é também explicado pela boa teoria de Marx de que afirma que o homem é fruto do seu trabalho, sua obra. Sorte daquele que, num mundo que virou máquina e virtualidade, ainda desenha com carvão.
Tento há tempos especializar-me em grafites (tento aprender as técnicas da gravura pelo mesmo motivo: praticar o “memento” de um “fóssil”, como se eu pudesse contribuir na história natural do traço como elemento da preservação do que está por ser extinto).
Gostaria aqui de mencionar o texto “Acerca da palavra desenho” de Flusser pela abordagem etimológica e semântica que introduz e que, a meu ver, não foi pensada até hoje.
Ele começa dizendo que em inglês design é tanto substantivo como verbo. Sendo substantivo significa intenção, plano, propósito, meta, conspiração malévola, conjura, forma, estrutura fundamental, mas relaciona tais significados com “ardil” e “malícia”. Como verbo, diz-nos, significa tramar algo, fingir, projetar, conformar, proceder estrategicamente. Depois menciona a latina signum e o alemão zeichnen. Desenhar significa ent-zeichnen, ou seja de-signar.
Com tudo isso o que ele quer é entender, semanticamente, como a palavra chegou ao seu significado atual.
Claro que Flusser está pensando mais em design (como desenho estratégico) do que no desenho como expressão da vida (aquilo que precisamos reservar) como buscamos discutir aqui, mas a pulga atrás da orelha que ele nos traz não pode ser esquecida. Comento isso, porque além de minha confiança no pensador Flusser, vejo que é o primeiro texto (dos escassos que existem sobre o tema) que me faz duvidar de algo implícito no desenho.
Ora, o que Flusser faz é usar a etimologia e a semântica para mostrar um aspecto da prática e também da instituição desenho que envolve o que ele denomina um contexto de “ardis e malícias”. E, segundo ele: “o desenhista é um conspirador malicioso que se dedica a fazer “trampas” (como li em espanhol, pois não achei o texto em português não sei se esta é a palavra original) ou “enganos”. A tais palavra ele relaciona as palavras máquina e mecânica próprias do universo de engenheiros e designers, bem como a palavra grega techné (ou técnica) e a palavra latina ars (arte) e a palavra alemã Kunst (arte, mas que carrega a etimologia do verbo Können, poder fazer e conhecer) e outras que, no desenrolar de nossa conversa, posso até trazer à tona. Por enquanto, gostaria apenas de colocar em cena este “engodo” presente no “desenho”.
Para Flusser, a cultura que conheça sua função de “embusteira” em relação à natureza que ela sempre engana, dará um caminho melhor para si mesma. O desenho está no fundamento de toda cultura, assim como você mesmo disse, estar na base de toda subjetividade nascente (desenho logo êxito, na sua apropriação do cogito cartesiano).
Para Flusser, é pelo desenho que deixamos de ser meros mamíferos e nos tornamos artistas livres e, além disso, deuses nascidos do artificial.
Ora, é o artifício que está na base do desenho. Sempre pensei o artifício, a ilusão como num trompe-l’oeil (uma desenho para iludir mesmo, como num escorço), um desenho que “parece fotografia” como algo que não teria problema algum. Em outras palavras, a percepção de Flusser me deixou assustada, serei eu uma “enganadora”. Mas se me torno o que desenho, torno-me embuste, engana-olho, eu também?
Engano quem? Por que quereria enganar? Se o design faz isso, faria isso também o nosso desenho?
Apenas proponho mais uma pergunta neste curtíssimo espaço. Devo ainda, ao analisar seu texto, orientar minhas palavras como perguntas, já que vc colocou diversas questões que me obrigam a pensar.
Um beijo,

Marcia

(imagem: desenho de Marcia Tiburi)

domingo, novembro 19, 2006

Memórias de um Sábio

Vivo dentro de mim
E vive dentro de mim uma guerra
Entre o mundo de dentro de mim
E o outro
[poema do livro Memórias de um Sábio]
.
Dedicado às queridas Rafaela e Harumi
.
Quando eu tinha catorze anos eu comecei a escrever poesia.
Desta imprudência surgiu um pequeno livro amarelo que serviu de abrigo para os meus versos até os dezessete anos.
O mais incrível era o título que abria esta peça: Memórias de um Sábio.
Não faço idéia do que me moveu a batizar de forma tão inapropriada aquele caderno de anotações poéticas, posto que eu era um mancebo imberbe entre acnes e, além de tudo, não havia ali o menor registro memorial da minha vida daquela época. Sem sinais de fatos ou pensamentos ocultos. Sem pistas das paixões ou das revistinhas proibidas. No entanto, talvez eu possa especular o porquê de tal infâmia imodesta.
(Como eu não sei mais realmente quem era aquele garoto que escrevia no caderno amarelo, sinto-me à vontade para citar e pensar seus versos, sem constrangimentos egóicos ou seja lá de que natureza...)
Quando se é criança costuma-se perguntar tudo e, mais ainda, adivinhar tudo. Em contrapartida, na adolescência - esta invenção moderna - temos menos vontade de perguntar e passamos a preferir a descoberta solitária das coisas e, num segundo momento, a expressão de nossas fundamentais idéias ao mundo.
Cerca de 400 anos a.C., Sócrates marcou a história de pensamento ocidental com seu famoso slogan "Só sei que nada sei". O primeiro poema do livro diz:"Às vezes caminho muito/por caminhos já caminhados/ Não chego a lugar nenhum/ onde todos me esperam". Uma espécie de releitura Socrática, algo como "Só sei que ninguém sabe bulhufas".
Quando se escreve um diário ou mesmo um romance a partir de lembranças do passado, os fatos parecem absolutamente relevantes para a compreensão de tudo. A poesia resgata uma outra forma de memória e também uma vertente menos comprometida da sabedoria. Funciona em um outro registro, o de uma parceria com o universo do inconsciente coletivo. Assim, os fatos tornam-se desimportantes, sendo que a memória é afetiva e alegórica - pouco interessa de que vida se está falando.
Para além da parceria com o inconsciente, há no livro minhas primeiras parcerias com Menezes, meu pai. Uma delas diz: "Idiota é quem aponta a estrelas e olha o dedo/ Mas não lhe dêem uma faca: se olhar as estrelas/Aponta o dedo/ Ou fura o único olho/ do Rei". Memórias familiares.
Tem também uma série que se repete ao longo do livro denominada como Frases Polidas. Escritos como "A loucura é a última fase da perfeição" ou "Quero encontrar alguém com quem eu possa ficar em silêncio à vontade". Memórias da ironia. Ou do desejo de amar.

Homens povoam o deserto

Homens que não sei
Em locais que não creio
Em mim
Eu nem me conheço

Homens povoam o deserto
o deserto dos espíritos
e o desejo
de não mais desejar

Homens constróem o futuro
e a paz sangra atrás da porta
E ladra a hipocrisia
E morde a estupidez

Estou cheio de desertos

[poema do livro Memórias de um Sábio]


O memorial é a busca do aconchego na ilusão de uma vida que se imagina ter vivido. Imagino que o insólito título tenha vindo da maneira que acabei encontrando para negar o que eu era. O adolescente possui uma coragem temperada de medos que lhe dá uma grande vontade de desabafo. Este título devia ser o desabafo de quem não tinha medo da verdade, algo como "Só sei que tudo sei!". Quando a única certeza da vida é o seu fim, a sabedoria sempre será uma ilusão. Assim como as memórias meramente factuais.

Esta é minha saudação àquele rapazinho que escreveu Memórias de um Sábio, por quem eu tenho hoje imenso carinho, e a quem não importava a completa ignorância para declarar sua poesia, sua sabedoria.

E àqueles que, nesta fase da vida, já têm o suficiente dela para viver, amar e morrer.

Amor
que me ensina a ensinar
que me ensina a ensinar a ensinar
E por entre os vãos da desconfiança
Acho minha parte esperança
Acho só
Não entendo
[poema do livro Memórias de um Sábio]

(Imagem: Folha de rosto de Memórias de um Sábio)

quarta-feira, novembro 15, 2006

Diálogo sobre o Desenho II


Mar,

Desenho. Em português a palavra remete ao verbo na primeira pessoa do singular, em tempo presente. Eu desenho um desenho. A nova configuração cósmica ao alcance da mão. O nascimento da alma a partir do gesto. É como se a maneira que cada pessoa possui para se expressar pela ação de seu corpo pudesse ser concretizada no espaço-tempo de uma folha de papel. Ou na areia, a delineação preguiçosa realizada com um graveto, um dedo ou a mera e efêmera forma registrada pela passagem das ondas do mar. Todo desenho é o legado de um sopro.
O ato de se fazer importante o suficiente para se responsabilizar pela interferência abrupta no território neutro de uma folha de papel sulfite deve ser o primeiro passo para a grande transformação na forma de um ser humano notar o universo ao seu redor.
O desenho é o gen do pensamento; é o que vem antes, a vontade se antecipando ao desejo.
O desenho é para o pensamento estético o que a voz é para a música. O início que, se recalcado, apenas aguarda o eterno retorno.
Deve ser por isso que Leonardo da Vinci, desenhista, músico e cientista, dizia que o desenho era a grande filosofia. A redescoberta desta voz deve vir pelo risco, ou seja, pelo traço. Um desenho só ocorre quando o olho o revela. Desenho(olho), logo existo. É, como disse Oscar Wilde sobre a simplicidade, "o último refúgio do complexo". E o refúgio é o lugar seguro para onde vamos para nos protegermos, para descansarmos e traçarmos os novos planos-mestres. Será o desenho a toca do nosso bom lobo?
Sinto, nesta manifestação tão primordial, o germe da revolução. Penso no que pode haver de político neste ato quase pueril de se registrar em linhas e sombras um desejo.
Pois o desenho, ao contrário do que pensam muitos, não é uma ação das mãos, é uma ação do olho humano. Não é questão de coordenação motora, mas de aprimoramento do olhar. Por isso podemos ver o desenho das colinas, dos prédios, da tempestade, do fogo.
Um bom exemplo é olhar as nuvens. Os bons desenhistas enxergam mais formas do que os maus desenhistas. E não existem os não-desenhistas, apenas os que já se recusam a trabalhar.
Talvez seja esta a tarefa do desenho/desenhista dentro da nova ordem: redescobrir os desenhos inscritos nas entrelinhas da percepção e ajudar o mundo a enxergá-los. Como quando você vê no céu uma grande boca engolindo um dragão branco e mostra ao outro ao seu lado que, após alguns instantes, lhe diz "puxa, não tinha percebido, está ali e é incrível".
Desenhar é gerar metamorfose a partir da visão; a física explica que o olho, no momento em que enxerga o objeto, modifica-o. Observe-se que o desenho não serve ao belo exatamente, mas sobretudo ao corte; todo traço de giz no papel é um corte de gilete na estrutura, um grito silencioso de horror. Como o gesto das palavras ilegais pichadas nos muros urbanos em letras novas. Pois o silêncio não é ausência, mas estratégia.
O olho, ao criar o desenho, se revolta. Toda revolução é a reinvenção do olho humano.
As pessoas desenham cada vez menos, porque a vida vai esfacelando aos poucos todos os instrumentos de reflexão. Como em sua experiência com a faculdade, assim como a minha, a prática institucionalizada pode vir a comprometer o desejo e a sensibilidade. Sou, claro, favorável a novas políticas do desenho e da educação do olho.
Mas agora eu lhe pergunto cruelmente: de que formas o desenho, no mundo das altas e velozes tecnologias, rituais eletrônicos e vistas calejadas, poderia vir a ser estopim para mudança ética e política? Digo, como isto pode hoje tocar efetivamente a sociedade. Ou a sua idéia de revolução não atravessa a estética? Ou a estética, que se pretende política, não atinge sequer a ética?
(Ação política, individual; coletiva, inconsciente.
Desenho, Eu)
Beijos de carvão,

Fer


(imagem: desenho de Fernando Chuí & Marcia Tiburi)

terça-feira, novembro 14, 2006

Diálogo sobre o Desenho I - por Marcia Tiburi & Fernando Chuí


Fernando,

Há dias prometi escrever a você sobre o desenho desde que conversamos sobre esta possível troca de idéias. Vou tentar expor meu pressuposto para iniciar esta conversa: meu simples gosto pela coisa e mostrar o quão complexo isto pode ser e como esta afirmativa sobre minha percepção pessoal com o desenho, possui um lado político e ético que pode tocar a todos nós. Trata-se do ético e político que está sob o véu de toda estética. A ação, o modo de ser que a define, que está por trás de toda aparência.
Pois, Eu desenho, Tu desenhas, Nós desenhamos, ora todos desenhavam e muitos perderam o vínculo com esta forma de expressão seja porque foram educados para esquemas, ou alfabetizados com certo recalque das funções expressivas, seja porque nossa cultura não valoriza este trabalho com o traço. Mas além de eu, tu, nós, há “Eles” que “desenham, hoje”. Quem são eles? As crianças, os estudantes, os ilustradores, os chargistas, e alguns apaixonados como nós que não profissionalizaram sua arte. Tomo este tema pensando em todas estas pessoas, além de nós. Suspeito que a relação com o desenho seja a mais ancestral relação que uma pessoa pode ter com a representação e se ela permanece, companheira da vida de alguns e trazendo-lhes tantas alegrias (infinitas e minimalistas ao mesmo tempo), por que outros se separaram desta possibilidade?
Além disso, lembro-me como a faculdade de artes, quando eu fazia meu bacharelado em desenho, foi desestimulante. Fiquei pensando, por mais artistas que fossem os professores – e não quero deixar nenhum tom de queixa ao que vou dizer – faltou-me sempre uma introdução ao desenho que me colocasse junto com o que é próprio ao gesto de desenhar: o gesto de pensar como ato de criar conceito por meio de traços.
Por isso, a filosofia sempre me pareceu mais instigante, porque eu via nela a construção de conceitos que o desenho também fazia, mas de modo explícito.
E, para começar nossa conversa, pergunto: podemos dizer que desenhar é pensar? Digo pensar como um modo qualificado de olhar e ver. Você considera que este vínculo entre filosofia e desenho tem sentido? Não seria a filosofia uma explicitação do que no desenho é apenas implícito?
Um mundo onde as pessoas desenhassem mais, como se dançassem mais, ou cantassem mais, seria um mundo melhor? Você acha que esta preocupação é muito ingênua?
Um beijo,

Marcia

(imagem: desenho de Marcia Tiburi)

domingo, novembro 12, 2006

Canção sobre um Diálogo V - Manifesto da Canção de Ninguém


Caro D.

Perdoe a minha demora a responder. Isto se deve ao fato de as suas questões exigirem tempo para reflexão e, com os shows e tudo mais, só pude fazer isto agora. Bom, vamos à lida.
Acho importante ressaltar que, quando se fala da morte da canção, trata-se da morte de uma certa forma de canção, que se ausenta cada vez mais do grande mercado. Faz sentido, pois a música popular surge, assim como o cinema e outras artes modernas, vinculada ao consumo de massas.
Desta maneira, é preciso se definir ou se redefinir esta tal canção que esmorece, para que ninguém se afaste da claridade da discussão.
(Ligue o rádio ou a TV, permanece vivíssima a canção-chichê)
Conceitualmente, a canção é aquela breve composição para canto acompanhado de instrumento, ou até desacompanhado. Esta modalidade musical vem desde a remota Antigüidade, atravessando toda história da música, do canto Barroco acompanhado do Alaúde, passando pelos românticos e impressionistas até aportar no século XX, na fusão cultural que você falou bem em seu texto. Sob o ponto de vista formal poderíamos pensá-la como uma pequena peça onde se apresentam, em geral, uma forma A sucedida (ou não) de uma forma B, preparação para o refrão que viria a seguir como a forma C. Outra maneira de se pensar a canção é um certo tipo de canção, aquela mais lenta e de harmonia complexa, como se vê na MPB em músicas como Luíza de Tom ou Beatriz de Chico e Edu Lobo.
Estas definições dizem respeito à semântica desta palavra e não encerram a questão, mas servem para deixar claro que não é sobre qualquer forma de canção que debatemos aqui, que não é sob tais prismas que buscamos a reflexão sobre o gênero.
Por isso, penso que temos de definir de que tipo de canção tratará este diálogo; ou melhor, sob que enfoque lidaremos com estas canções. Ou mesmo se deveríamos tratar aqui da canção.
(Pois que, às vezes, precisamos fugir para outro hemisfério para compreender o nosso próprio mistério)
Tratamos de composições que trazem o quê? A crítica de seu tempo, de sua época, de sua própria estética? Um pulso que canta para seu povo sob uma linguagem que não ignora seus antepassados, em uma metalinguagem que traz em si o germe de sua auto-destruição.
As tais “baixa” e “alta” culturas podem retornar para suas moradas acadêmicas e dar lugar a um mesmo questionamento, sendo que a crise da chamada pós-modernidade não atinge apenas a música popular; a dita música erudita já não dita nada; a contemporaneidade vive em crise, não sabe pra onde ir, nem constitui mercado, mal encontra espaço nas academias.
Ou seja, talvez a questão seja bem maior do que a de nosso umbigos cancionistas, buscando guarida afetiva na formação de um novo público.
Eu lhe devolvo a questão: o que faz da canção-idéia algo tão indispensável?
Você me diz que precisamos de autores que se encarreguem da missão cancionista, porém, continuo fiel à idéia de que não precisamos dos novos nomes, mas das novas estéticas.
Nosso tempo é dependente químico das autorias, é fato; Ele precisa de nomes definidos, como uma revolução que precisa de heróis. Não obstante, é somente para consumo das massas.
A rigor, o que acontece de mais importante não é a obra de um autor específico, mas a obra de um grupo que representa e forja uma época e um estilo(é verdade que algumas vezes a obra de um estilo se confunde ou se resume à obra de um só autor). Com isto, respondo aqui à questão da Márcia sobre se a morte da autoria não seria o primeiro passo no sentido da morte da obra. Penso de outra forma: a obra poderia ser, num mundo politicamente mais evoluído, o legado de um estilo ou o posicionamento de um grupo diante da ordem estabelecida.
Assim, como compositor destas anacrônicas(aliás, como tudo hoje em dia) formas musicais denominadas canções ainda busco o manifesto da canção de ninguém.
Após o lançamento do Nunca Vi Mandacaru, refleti um pouco sobre a função social da música. Senti como uma apresentação de canções pode ser um momento bonito de comunhão afetiva, estética e até política. Não senti que havia ali um artista a ser legitimado, mas a possibilidade de ser porta-voz de um sentimento coletivo. Como se as canções não fossem minhas, fossem de ninguém.
Pois a canção de ninguém serve para cada uma de nossas vozes.
Pois a canção de ninguém não é obra de Deus.
E, com um tinteiro de lágrimas, todos podem assinar a canção de ninguém.

Abraços dissonantes,
Chuí

(imagem: desenho de Chuí)

quarta-feira, novembro 08, 2006

BrazilMaxRadio e minha "Adiccção"

Há dias, dei uma entrevista para a BrazilMaxRadio, uma estação internética de rádio para visitantes do mundo todo interessados em música brasileira. Conversei com o apresentador do programa, o norte-americano Bill Hinchberger, sobre minhas músicas e meu processo, além de cantar ao vivo no violão alguns trechos de canções. Aos que tiverem a curiosidade, o link da BrazilMaxRadio é http://www.brazilmax.com/brazilmax.cfm/id/17

É só entrar na página e clicar no link no final da página Listen to BrazilMaxRadio. Nossa conversa rola ao longo da programação da rádio.

Com Fusão Lingüística - A entrevista foi toda em inglês, algo que me fez ficar bem enrolado em vários momentos. O pior(ou melhor) foi na hora em que resolvi citar um texto do Luiz Tatit, onde diz que a canção é obra de uma dicção, e ocorreu um pequeno acidente lingüístico: a frase "The song is work of a diction(uma dicção)" virou "The song is work of addiction(vício, desejo compulsivo)".

Depois de esclarecida no ar a questão da minha prosódia dúbia(ou débil), eu ri em silêncio do equívoco da minha "dicção" e cantei ironicamente os versos "Não me Amola com esse Papo de que eu Falo Errado/Eu não me Calo/Eu crio a Língua quando eu falo".

Todo idioma é uma armadilha, você pisa em falso e detona um novo sentido, um novo acento ou um novo desejo. Como se diz no inglês prosaico, whatever...

A canção também deve ser lá obra do vício.


(foto: Bill Hinchberger and Me)

Bitcho´s IX


Gastramoris sp



Todo o tempo

novas tramas

novos jogos

novos dramas


mas a busca é sempre igual




amor e comida

.

(Desenho: Fernando Chuí & Marcia Tiburi/Texto: Luis Carlos de Menezes/Nome científico: Regina Cândida Gualtieri)

domingo, novembro 05, 2006

Carpinejar e Chuí em Canalha-Romântico


Eu contei ao Fabrício Carpinejar a frase de um filme do Hal Hartley. Ele emparelhou duas cadeiras diante de dois computadores. Meia hora depois tínhamos "Um Homem Precisa", canção-poema presente no nosso espetáculo "Poesia Explícita ao Vivo", batizado carinhosamente de "Canalha Romântico" e apresentado anteontem em Porto Alegre, super bacana. Obrigado pelo afeto e pelo ímpeto, Fabro.

Um homem precisa

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

Correr atrás de mulher
Que não mais te quer
Chamar a puta de santa
Chamar a santa de puta.
Rezar para que ela volte
Beber para que ela venha
Chorar para que Deus a tenha

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

Mentir que não já não dói
Doer para dar de novo
Soprar o último fora,
Pagar o primeiro beijo,
Roubar no jogo, amar
A quem jamais te amou.

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

Um homem decente
Precisa passar
uma noite
indigente
Lembrar que é cafajeste
Pensar que pode tudo
Para errar diferente.
Um homem precisa
Ser menos que um homem
Uma vez na vida

A tragédia é uma planta na janela
A verdade é sempre apenas
Parte dela.
E não interessa.

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

(foto: Show "Canalha- Romântico" no Auditório Barbosa Lessa no Centro Érico Veríssimo em Porto Alegre, dia 03 de novembro)

quarta-feira, novembro 01, 2006

Wow, The Dirty Darling! - Crônica de uma Banda de Garagem III


DD e o Paganismo Sociocultural


O nome Pagão, em nossa sociedade, assume uma certa conotação ruim, algo como bastardo ou traidor. Refere-se àquela pessoa que não segue a doutrina judaico-cristã, àquele que não pratica os deveres religiosos ou não chegou a ser sequer batizado. Como eu, por exemplo. Também é assim chamado aquele que segue uma religião politeísta, que adora vários deuses. É um herege.
Aliás, o sentido da palavra herege também é interessante. É assim proclamado aquele que professa heresias, ou seja, diz coisas contrárias à ordem religiosa vigente. É o subversivo.
A rigor, é apenas alguém que tem suas próprias idéias.
Esta é a grande e saudável ilusão do rock. Ao organizar sons em pequenos ambientes como os quartos dos fundos ou as eternas garagens, a partir de muito poucos elementos musicais como instrumentos precários, uns poucos acordes básicos e uma vontade ímpar de fazer acontecer algo em suas vidas, os integrantes adolescentes de uma banda têm a nítida impressão de desvirtuarem a lógica dada pelas instituições para parir uma voz própria: fresca, nova, revolucionária.
Há muito tempo que não há revolução estética no rock, mas isto não é realmente importante. A simples idéia de imaginar-se o personagem da subversão do sistema é um movimento absolutamente modificador da alma do indivíduo.
Nós, do Dirty Darling, estudávamos todos em um dos colégios mais tradicionais e ferrenhos de São Paulo. A escola possuía uma espécie de neo-liberalismo enrustido, semente de um neo-fascismo. Para se ter idéia, recebíamos um boletim em papel verde de computador com nossas classificações no bimestre ou semestre com relação à turma e a todas as áreas. Só faltava estar escrito LOSER no verso daquelas folhas pertencentes àqueles que, como eu, não constavam entre os dez mais dedicados do grupo. O colégio era o carrasco, o vestibular era a sentença.
Para além desta questão, havia também o velho esquema xerox kitch das escolas norte-americanas das turminhas populares, dos nerds - ali bastante representados pela grande quantidade de orientais obstinados com a aprovação no vestibular - e daqueles que passavam à margem de tudo. Ali tínhamos nossa exclusão e desgostos garantidos o suficiente para brotar em nossas vidas o espírito de subversão.
Somente deste segmento marginal poderia surgir uma banda como o DD.
Bom, falando assim, parece até que éramos todos uns alunos lamentáveis. À exceção da minha singular pessoa, todos os outros integrantes do grupo eram bons alunos. O Bigatto, a voz atonal do DD, criticava a tudo do alto de seu posto de primeiro aluno da área de humanas. É de um prisioneiro da estrutura que pode surgir o mais genuíno desejo de ruptura. Era Adorno invejando James Dean. Sentando na primeira fileira da classe, com os pés batucando Little Richards embaixo da mesa.
Eu e Bigatto flertávamos com o germe dos DD ao cantarmos, entre uma aula e outra no corredor do colégio, um discretíssimo Be-Bop-A-Lula, o velho clássico de Gene Vincent. Mais tarde, descobrimos outros hits de corredor, como Turn, Turn, Turn dos Byrds ou Deixa Eu Te Amar de Agepê. Cantávamos em voz baixa, ecléticos, heréticos, politeístas.
Em meados de 1990, quando eu já começava a estudar violão clássico e passava pelo processo de troca de suporte, do espaço do papel ao tempo musical, um fato fez o primeiro passo para o surgimento da futura, revolucionária e inotória banda, The Dirty Darling.
Ao adentrar nossa sessão de hits de corredor a música Take a Walk on The Wild Side de Lou Reed, pedi a Biggets que me gravasse uma fita cassete com uma coletânea de seus anti-Hits. Estas canções transitaram intensamente por mim e Bigatto, por Mamel, por Danilo Monteiro, por Cristiano Ricardo.
Naquele período, um certo grupo de burgueses virgens tomou conhecimento sobre as putas, travestis e viciados de New York. Descobrimos que poesia também vinha do esgoto, pra além das aulas de redação. E o pior, descobrimos que Lou Reed tinha sofrido terapia de choques elétricos antes de deixar o piano clássico para se dedicar à sua tosca guitarra elétrica.
Kill your Sons, ele dizia, pagão.
Parindo ali mais alguns dos seus pobres bastardos.

(continua...)