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quarta-feira, dezembro 27, 2006

Meus votos para 2007


Na fome
Degustação
No desejo
Carícia

Que seja devorar
o exercício da língua

É preciso saber beber
daquilo que mais nos revele
O maior órgão do corpo
é a pele

(Este é o último post do ano.
Viajo e retomarei aqui no final de janeiro.
Desejo a todos que vierem a visitar este espaço neste intervalo
muitas flores e frutos no ano de 2007 )

(imagem: Bitcho desenhado por Fernando Chuí e Marcia Tiburi)

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Herói é humano


Quando eu era criança eu passava todo o tempo desenhando super-heróis.
Eu fazia assinatura das revistinhas da Marvel e aguardava ansioso pelos gibis SuperaventurasMarvel, Homem-Aranha, Heróis da TV e Hulk, além de comprar na banca de jornal as séries do Batman e do Super-homem.
Para quem não é formado por esta literatura, é preciso explicar de que se trata. É a arte seqüencial, definição do gênio Will Eisner, que flerta com o infantil e com o adulto ao mesmo tempo.
Esteticamente, as HQs de super-heróis também têm algo de paradoxal. Por um lado, elas se propõem a uma seriedade digna de uma Odisséia, e, por outro, apresentam-se com desenhos cheios de balõezinhos que tornam quase impossível a tarefa de se escapar do kitch. Seus desenhistas trabalham as figuras todas em proporções realistas e, não obstante, não conseguem escapar da sua caricatura de nanquim. Com o advento das graphic novels dos anos 80, criou-se uma legenda de que então as HQs finalmente assumiriam seu posto de arte de boa qualidade. Todavia, não acho que a tal qualidade estética da ditas HQs adultas fossem o maior legado das histórias de super-heróis. O cinema, sim, resgatou delas a sua essência, algo como o kitch-cult.
Toda HQ de super-heróis retrabalha, como evidencia o próprio nome, o mito do herói.
Recorro - mais uma vez - a Joseph Campbell que diferenciava as duas figuras públicas: o herói (figura pública antiga); e a celebridade (a figura pública moderna). Enquanto a celebridade se populariza por viver para si mesma, o herói assim se tornava por viver servindo sua comunidade. Todo super-herói deve atravessar alguma via crucis. Gandhi disse que, quanto maior nosso sacrifício, maior será nossa conquista. Como Hércules, como Batman.
Por trabalharem sob uma narrativa progressiva e cíclica, e serem tecnicamente mais ambiciosas do que as outras modalidades de HQs, as histórias de super-heróis se deslocaram de seu meio de revistas e jornais, aproximando-se muito mais das séries de TV e do cinema, mas sem perder seu mito pop. Talvez por isto as melhores coisas que o cinema comercial produz ultimamente sejam as adaptações das HQs de super-heróis.
O cinema nasceu comercial e, a despeito de uma série de diretores que conseguiram desenvolver o chamado cinema de arte, de Bergman e Fellini a Peter Greenaway e Almodóvar, é disto que se trata, uma imensa indústria de entretenimento. Não acho esta definição algo absolutamente depreciativo. Recordo-me de um gibi em que o Surfista Prateado dizia aos seres humanos: "A vida é imensa e complexa - acontece dentro e à margem dela mesma."
Toda HQ traz em si alguma coisa de industrial e marginal, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Os filmes de super-herói, ainda que transpondo essa cultura para a grande e famigerada indústria, realizam uma outra façanha, que provavelmente sem eles não ocorreria: a formação de novas mitologias reafirmando os mesmos ideais heróicos da antigüidade ao homem moderno. Fellini afirmou uma vez que Stan Lee, o criador da Marvel e de diversos heróis populares, era o Homero do quadrinhos.
Toda boa história de super-herói é uma história de exclusão social. Homem-Aranha é um Nerd, Hulk é um monstro amaldiçoado, Demolidor é um deficiente, os X-Men são indivíduos excepcionais, Batman é um órfão, Super-Homem é um alenígena expatriados. São todos símbolos da solidão, da sobrevivência e da abnegação humana.
Não se ama um herói pelos seus poderes, mas pela sua dor. Nossos olhos podem até se voltar a eles por suas habilidades fantásticas, mas é na humanidade que eles crescem dentro do gosto popular.
(Os super-heróis que não sofrem ou simplesmente trabalham para o sistema vigente tendem a se tornar meio babacas, como o Tocha-Humana ou o Capitão América)
O cinema de Hollywood tem a função de nos mostrar até onde alcança o inconsciente coletivo, o topo do lugar-comum, aquilo que a sociedade espera dela mesma (o que, às vezes, nos traz boas surpresas); e os super-heróis, hoje superstars, são mitos oriundos de experiências feitas em laboratórios do submundo, a velha sub-arte das HQs, a santidade surgida do lixo. Hulk e Homem-Aranha são seres que criticam a inconseqüência da ciência, com sua energia atômica e suas experiências genéticas. Os X-Men nos advertem para a educação inclusiva. Super-homem é aquele que mais se aproxima de Jesus Cristo - e por isto talvez seja o mais popular de todos, mais popular do que os Beatles, que um dia disseram serem mais populares que Ele - em seu sacrifício solitário em defesa dos seres humanos, mas também tem algo de Aquiles, com seu calcanhar que é a kriptonita. Humano e super-herói, como Gandhi.
Não houve nenhuma literatura que tenha me marcado mais do que essas histórias em quadrinhos. Eu raramente as leio hoje em dia, mas quando assisto a bons filmes de super-heróis eu me lembro que todos temos um lado ingênuo e bom, que pode ser capaz de suportar a dor da solidão por um princípio.
Eu sempre me enterneço ao ver os X-Men, o Homem-Aranha ou o Super-Homem. Vejo diversas vezes, sei os diálogos. É verdade que há, entre esses filmes, alguns absolutamente lastimáveis; contudo, os filmes de super-heróis são a prova da sobrevivência deste mito em meio ao glamour e a indústria de "celebridades-miojo". Parafraseando o Surfista Prateado (e Deus queira que seja bem retratado nas telas...), é a negação do sistema, trazido dentro e à margem de sua grande indústria.
Tenho a raiva do Hulk, o mau-humor do Wolverine, a solidão do Super-Homem. Temos a tendência a atribuir nossos erros e defeitos à humanidade que nos comporta.
No entanto, vejo esses filmes e lembro-me que, ainda hoje, herói é humano.

(foto: desenho feito sobre quadro negro na sala do Menezes, meu pai; à frente, nós- 1987)

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Auto-retrato

Quem quiser me conhecer
Que venha como um turbilhão
Metralhadora, bala de canhão
Sonho, tempestade, vulcão
Epidemia, lambida de cão

Só não estranhe
os meus olhos de assombro
Só não recue
quando eu me esconder num manto

Eu terei a vida inteira
para lhe retribuir o espanto


(imagem: auto-retrato de Chuí, 1997)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Assassinato e Proteção: Um conto

Esta noite eu matei alguém.
Não era alguém que deliberadamente me fazia mal. Nem era sequer uma pessoa má. Tampouco era alguém concretamente, mas uma forma mal sintonizada no universo que se refletia em minha mente sob a imagem de uma pessoa. Esta forma agora se foi como fumaça se dissipando no ar, desenhando imagens que valem menos pelo que se revela e mais pelo que dela desaparece.
É preciso aprender a matar as pessoas. No terreno simbólico, é claro, não quero evidentemente incitar ninguém a qualquer ato de insanidade criminosa.
Mas sei que matar alguém sempre soa como algo terrível; e realmente o é.
Todavia, é como eu vi noutro dia em um filme em que o protagonista explicava sua serenidade ao outro personagem após um assassinato: “a coisa mais interessante de se fazer algo realmente terrível é que, depois de pouco tempo, você não se lembra de absolutamente nada”. Muitas vezes, é preciso fazê-lo - ser o agente de nossa própria leveza.
Praticamente todas as mágoas que guardamos de nossa história assumem alguma personificação, e o problema de não matar estas pessoas é que assim não conseguimos evitar o passado correndo nas veias a sua substância venenosa. Esta, sim, é uma condição horrível. Amigos de infância, professores, colegas de trabalho, namoradas, maridos, pais. Até mesmo com pessoas já mortas é recomendável o assassinato; nesses casos o cuidado com a precisão deve ser redobrado. Muitas destas figuras tornam-se, por vezes sem que a gente sequer desconfie, os nossos fantasmas pessoais; nos perseguem em todas as camadas do inconsciente, nos afetam em todos os setores da vida cotidiana.
(Há que se constatar que com certas pessoas torna-se inviável esta medida. Casos extremos como estupradores, pais suicidas e outras maldições; pessoas que, por terem outrora nos ferido tão gravemente, tornam-se proprietárias de certas regiões de nosso afeto, impossíveis de serem mortas por já nos terem matado. Já são nossos sócios constituintes, é fato, vêm pra todas as reuniões, têm influência em todas as decisões)
Falo de causar a morte de malditos menores, mas não menos letais. Eu poderia evitar palavras associadas à morte, usar de eufemismos como esquecimento, perdão, passagem a outro nível, mas qualquer uma delas soaria somente como paliativos diante do grande mal que seria deixá-los viver em nosso mundo. O ato consciente de agir e decretar a morte de alguém é indispensável em muitos momentos da vida.
O tempo é uma entidade que não abriga dois níveis desarmonizados, ou seja, uma pessoa do passado que teima em ocupar o mesmo espaço do presente. Gera uma espécie de curto-circuito afetivo, nos confunde os sentimentos. Para elas, só o cadafalso.
Quando eu digo que é preciso aprender a matar alguém é porque matar alguém é realmente um ato que deve ser realizado com toda a perícia e propriedade. Senão, acontece como nos filmes onde os vilões deixam os heróis para morrerem em situações hipoteticamente impossíveis de se sobreviver, mas eis que hipoteticamente não é efetivamente, e eles escapam sãos a salvos. Não se pode esquecer que nesse filme nós precisamos exercer o papel de um competente carrasco. A pior coisa de não se saber matar alguém é que esta pessoa permanece viva da pior maneira possível: como um morto-vivo.
Assombrando nossas casas, arrastando correntes em nosso inconsciente. Como quando se ataca diretamente aquele em quem se acredita estar nosso inimigo real. Ledo engano atacar a carne, eles são espíritos; nos castigam dentro da alma, cenário desta operação. Os fantasmas nos habitam sob muitos disfarces; a culpa é um deles, muito comum. A culpa não é comum nas pessoas que sabem assassinar seus carrascos, mas é muito presente naqueles que não souberam dar fim a seus corpos. Esses fantasmas também costumam surgir sob o capuz da vergonha, outro instrumento da fantasmagoria. O bom matador não tem vergonha, pois acredita na sina; a vergonha é sinal de crime imperfeito.
Dirão alguns que todo morto merece ser enterrado, uma pedra em cima e uma epígrafe para que não mais se levantem de lá após o ritual. Discordo, acho que não se deve enterrar um morto, pois isto seria uma boa maneira de se criar um cenário de terror; eles se levantam das tumbas cheios de terra no meio da noite. Enterrar significa deixar espaço para mágoas, rituais funebres, ossos, vermes, raiva, ódio reincidido, além da sensação de incompetência, de não ter feito a coisa direito. Fogo neles: queima-se o espírito, se possível com um fósforo de hotel barato, para nunca mais se lembrar de seu nome nem de nada. Com o espírito devem ser consumidas as cartas, destruídas as mensagens de e-mail, reduzido a cinzas o número no telefone celular. O bom assassino não deixa vestígios, muito menos para si próprio. O melhor da morte da pessoa é fazê-la não ter existido jamais.
Esta noite eu matei alguém. Fiz isto por uma única razão: eu decidi fazê-lo. Por vezes, a única etapa que nos separa desta alforria é a simples decisão. Mas para isso é preciso estar atento ao timing, o momento de maturação dos elementos que se manifestam à nossa volta. Há a hora certa. Pois quando se mata alguém, não há retorno.
Este você não volta jamais a maldizer, a repelir, a desejar o mal - mesmo frágil, à sua frente, você sequer o verá. Matá-lo é uma forma de altruísmo.
Extirpar a vida daquele que nos assombra é protegê-lo de nós mesmos.

(imagem: desenho-texto de Chuí)

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Sobre a minha timidez e o equilíbrio cósmico

Guardo no fundo do meu planeta uma raiz de sombras, uma voz, chamada timidez.
Há dias em que ela está mais à mostra, grave e acomodada feito as pernas do carvalho; noutros, é quase um sussurro imperceptível, um conjunto de finas veias a se misturarem na terra úmida. Ela muda o tom, a cor e a forma de acordo com as condições, afinal as sombras não sobrevivem sós, elas dependem da qualidade da luz alheia. Por vezes, ela se parece com um pudor vermelho; por outras, com uma antipatia cinza. Mas é tudo ilusão, pois é sempre a mesma criança azulada com medo de sair do útero, o mesmo velho marrom com vontade de retornar para lá. A mesma voz, sempre ali, a raiz inexata na base da minha fundação.
Em contrapartida, eu tenho uma outra voz, esta que canta. Pra piorar, exibo-me assim para platéias, tantas quantas quiserem me ver. Pessoas constantemente costumam se dizer espantadas com a minha face dramática no palco, bradando despudorada, em contradição com a minha presença cotidiana, quase sempre bastante sóbria e econômica, quase avarenta.
Em um mundo que padece da ditadura da histeria, sinto a timidez como um mecanismo psíquico que funciona sob uma lógica de equilíbrio cósmico. É como quando, em grupo de pessoas muito sintonizadas, uma delas precisa se retirar e todos sentem o desconforto, passam por momentos de re-harmonização. Eu sempre percebi que há um momento claro de desequilíbrio da ordem universal antes estabelecida. Regida por esta ordem, minha freqüência é constantemente alterada. Em ambientes onde há pessoas falando muito, tendo a calar-me. Faço isto como que para suprir a função de equilibrador da ordem social, para preencher o espaço dado com o vazio de palavras. Viro de costas pra acompanhar o movimento da sombra.
Como em uma orquestra ou em uma Big Band, onde os instrumentos por vezes devem desaparecer para dar lugar às outras vozes que virão fazer seu solo. Nos ambientes agitados, falo pouco, alguns poucos contracantos de oboé em resposta aos temas das melodias principais. Com pessoas quietas, torno-me expansivo, faço os violinos, os improvisos do saxofone. Com os velhos amigos, Free Jazz.
Minha timidez é dialética e musical.
Ao olhar para o mundo repleto de informações, tenho a sensação imediata de ser um instrumento invisível. Logo percebo que não é verdade, que há pessoas que sempre acabam notando minhas tonalidades. A consciência de um mundo interior tão cheio de eventos me traz para esta impressão de que, mesmo quando me olham, não me vêem. As pessoas mais sensíveis podem constatar que há algo por trás, mas não conseguem definir em palavras. É uma estranha autocrítica.
Quando estou assim, somente a luz me atravessa a consciência. É como eu gosto de ser visto. De tão lúcido, translúcido.
Na verdade, tento sempre cegar a verdade da inveja que possuo, assim como todo tímido, dos extrovertidos, dos evidentes, dos histéricos com seus holofotes de arco-íris. Invejo tudo o que não faz parte da minha transparência cósmica.
Deve ser por isso que eu canto. Para romper o silêncio do peito, a outra voz. Para arrancar do solo esta raiz, tal qual grito de mandrágora. Para confundir o tecido das sombras com a matéria dos astros.
De tão espacialmente tímido, acho que aprendi a me esconder na luz.

(imagem: desenho de Chuí)

quarta-feira, dezembro 06, 2006

fato quase


(Há cerca de dois anos, eu escrevi oito histórias que, juntas, formavam Contos do Mal, meu livro não publicado de contos . O mal não habita nenhum outro espaço que não o de nossas almas; é a entidade que nos proporciona a visão do bem. O conto que segue é o mais curto e o último desta série - uma visão sobre a fragilidade da vida apolítica.)
.
Fato quase

Ela não sabia nadar, mas tentava, chacoalhava seus braços e se debatia em vão; vinha de muito longe, passeara por belos campos, presenciara a beleza dos céus e suas cores misturadas e do esplendor das matas impronunciáveis.
Era uma ironia que agora se encontrasse sob tamanha dificuldade; já havia passado por momentos muito mais complicados e perigosos e, por fim, escapado de tudo ilesa; todavia ali estava ela, encarcerada pelas águas, condenada pela sua própria estupidez. Como aconteceu, não vem ao caso, para que se buscar um responsável por um erro quando este mesmo se agarra às suas últimas forças em uma luta patética pela sobrevivência? O fato era que ela não resistira, como sempre, às tentações do desconhecido; para ela quase sempre fora impossível olhar o abismo sem se atirar nele.
Talvez fosse desprovida de medo - ou teria pavor? – e naquele instante fosse provavelmente o mero instinto de sobrevivência; não tinha, que se diga, algo que pudesse substancialmente ser chamada de um medo, contudo era incrível como o medo por vezes pode ser tão incrivelmente próximo a se confundir com o puro reflexo de defesa.
A sua vista estava cada vez mais turva, seu corpo boiava na imensidão aquática enquanto mantinha-se lutando pela vida ou quase isso. Embora o drama de sua luta pela sobrevivência seja o enfoque do que se escreve aqui, tudo ali não passava, na realidade, de um pequeno ou quase incômodo. Muitas vezes, a morte ou a guerra de outrem resulta, na melhor das hipóteses, em uma pequena coceira no canto da nuca alheia. Assim era, a rigor, a história de sua vida – não somente a dela, mas de muitos outros como ela – tratava-se de um afogamento, bem podia ser um atropelamento, um pisoteamento, um bombardeio, uma explosão, um enforcamento, um espancamento, um envenenamento.
Desprovida dos instrumentos necessários para a reflexividade, ela se fazia sempre banal e sua morte poderia ser até mesmo desejada ou meramente desprezível. Não porque era pouco visível - pois o era afinal - mas porque não havia em sua classe alguém que tivesse condições de erguer a voz contra tamanha brutalidade, o ser que se vê sem um grupo que o represente possui a maior de todas as solidões.
As águas tornavam-se cada vez mais agitadas, ondas ferozes lhe arrastavam e brincavam com seu corpo frágil como cachorrinhos brincam com brinquedos de borracha abandonados pelas crianças. Nada novo, aliás, em sua classe. Não há argumentos diante de um corpo a se encher de água, a braços que se desmantelam, à imagem de uma vida desesperada que grita os últimos movimentos para se manter, não há nada mais vivo do que um corpo lutando pra não ir embora, pois a vida nesta hora se revela no corpo e ainda mais no olhar daqueles que produzem seu cinema psicológico. Mas não havia olhar.
As ondas se formavam a partir da peça metálica que se movimentava naquela lagoa, entrava e saía levando e derramando pequenas partes da água daquele reservatório. Ela ia sendo carregada por aquelas marés a cada gesto brusco do instrumento, perdia suas forças; havia pouco a fazer, mas não desistia, pois que nem sabia o que era isso. A água estava quente, amarela e translúcida e boiavam ao longo daquela superfície líquida várias folhas verdes, vermelhas e marrons, além de estranhos objetos amolecidos a se esfacelar naquele meio. A sofreguidão com que começava a se movimentar o instrumento metálico fez com que as águas começassem a empurrar o corpo já quase inválido dela para as margens do lago poluído.
Uma pequena esfera verde acertou sua cabeça e após alguns segundos o empuxo das águas tragou-a para o fundo para depois arrastá-la para uma das bordas da estranha lagoa ou quase isso.
Seu equívoco havia sido evidente, separar-se de seu grupo. Deveria haver uma lei que protegesse os irreflexivos, que os proibisse de andar sozinhos – andar em coletivo é a única forma de sobrevivência dos seres desprovidos da qualidade reflexiva; ou ainda, a melhor forma de sobrevivência é a reflexividade, é a marca dos tempos modernos, afinal, pois a reflexão deixa sempre vestígios que servem para a real conexão com o grupo, livrar-se de ser incômodo é infinitamente mais complexo do que livrar-se de um incômodo, pensaria ela, se pensasse.
Por um instante pareceu que poderia escapar, mexeu, contumaz, as pernas e buscou se retirar das águas escorregando pela superfície lisa da margem onde fora levada, todavia a peça de metal voltou a remexer as águas e, quase que no mesmo momento, uma violenta onda caiu-lhe por sobre o corpo envolvendo-a e engolindo-a novamente para junto das coisas flutuantes.
De súbito, o instrumento cessou seu entra-e-sai e algo fatal aconteceu: ela agora era observada. Como se pudesse ter percebido, ela reunia todas as últimas forças e chacoalhava seus membros rapidamente; era desespero ou puro reflexo, mas era quase fuga. A enorme peça de metal agora vinha ao seu encontro, buscava seu corpo por entre as tantas substâncias que ali se misturavam. A primeira investida fez com que partes de água transbordassem dali, salvou-se por trás das esferas verdes. A segunda vez foi contundente, arrancou-lhe das águas num só gesto derradeiro; na verdade, partiu-lhe o corpo, deixando esfaceladas as partes que permaneceram na água.
O mundo poupa tolos, desvalidos, inocentes, idiotas. Mas não há perdão jamais para os seres que andam a sós e sem pensamento – e, sobretudo, aqueles sem representação de classes.
E por vezes o que restará do fato, ou do quase fato, e como as únicas provas de vôo, serão asas molhadas de um quase protagonista se desfazendo sobre a sopa.

(imagem:"Fly"colagem de Chuí)

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Show no dia 3


Domingo realizarei a última apresentação de 2006 do meu Mandacaru aqui em sampa.
Farei um show especial com o grande gaitista Guappo e com o velho cumpadre Guima na guitarra.
Aproveitando a formação, farei uma homenagem à minha velha fase de "bluesman" de há dez anos, já pensando em um projeto que ando discutindo com Guappo para 2007, unindo o blues americano ao nosso blues - a solidão dos velhos sambistas, a tristeza dos nossos Jecas, etc...

quarta-feira, novembro 29, 2006

Diálogo sobre o Desenho IV


Mar,

Para discutirmos a respeito do Eu que se pronuncia no desenho não poderemos evitar a discussão específica sobre o Eu. Aqui a pergunta não é Quem sou eu?, mas O que é Eu?
O pronome da primeira pessoa do singular, a entidade metafísica de uma pessoa, aquilo que nos é próximo na mesma medida em que nos é impossivel tocar. Sem a pretensão de responder a esta indagação descabida, reflito sobre o Eu-desenho notando que Eu é a palavra que serve ao discurso de todos e não caracteriza ninguém. Por isto, cada desenho deve registrar no Eu o seu próprio enigma.
Curioso que Eu também sirva de prefixo para designar a idéia de bem ou do belo, como nas palavras eufonia(som agradável) ou eucrômico(que tem cor bela), ou tornando-se Ev, quando sucedida de palavra começada por vogal, como Evangelho - os testemunhos sagrados. O desenho deve revelar o Eu como idéia do que há de bom e belo em cada um que é capaz de vê-lo. Desenhar não é exclusividade dos que fazem, mas também dos que são capazes de enxergar. Um desenho não revela apenas o autor em si, mas sobretudo mostra alguma outra coisa essencial e intrínseca ao próprio ser humano. Seria todo desenho uma forma de Evangelho? O testemunho de seu lado bom e verdadeiro?
Isto me leva a pensar sobre uma das formas mais antigas do desenho e da pintura: o auto-retrato. No momento em que o artista se predispõe a representar a si próprio ele passa diretamente a uma espécie de pesquisa estética que pretende revelar não o que se expressa na superfície, mas o que há por trás da imagem. O retrato, até o advento da fotografia em si, teve um sentido de mero registro da imagem das pessoas que as encomendavam, da corte ao clero, das famílias aos governantes, e seu uso pragmático ocultava um outro sentido, o de instrumento do poder. Os governantes e suas famílias recebiam uma maquiagem pictórica para sempre parecerem dignos, poderosos e bonitos, e que hoje em dia só se alcança com a "magia" do Photoshop. Por outro lado, ao se retratarem, ficava clara a intenção de uma outra busca. Em frente ao espelho, vemos o avesso de nós mesmos, ou seja a idéia invertida que temos do Eu. Desta dobra surge algo mais importante do que a representação, a interpretação. Ou seja, segundo Nietsche, a única verdade possível.
O desenho revela, antes da beleza, esta verdade. Não a verdade do autor, mas do seu espectador. É como a figura do herói, que só é amado pelo povo por revelar o lado bom de cada pessoa. O resgate do olhar ao desenho é a salvação do próprio gesto para com a vida.
Joseph Campbell falou a respeito das duas figuras públicas; o herói, a figura pública antiga, amada por servir à sua comunidade; e a celebridade, produzida pela modernidade, desejada por servir somente a si própria. A propaganda, esta arma criada pela era Hitler, é a máquina onde se reproduzem as celebridades. Deve ser este o avesso do desenho, a propaganda, a imagem criada para esconder o que não se vê fora dos holofotes. A celebridade é a figura pública na era de sua reprodutibilidade técnica, diria Walter Benjamim, o filósofo que questionava a quintessência das obras de arte singulares como o desenho. A propaganda é o trabalho da celebridade, que tem sua vida nas vitrines da mídia para despertar a curiosidade da sociedade das imagens vazias.
Você não acha que o desenho, ao menos enquanto princípio, poderia vir a ser cada vez mais o trabalho do herói, ou seja, aquele que não pensa em fama e só vem a ganhar notoriedade quando reflete muito a sua comunidade? Ou a comparação é alucinada?
Entendo a posição de Vilém Flusser em ver no desenho um engôdo. Ao perseguirmos a forma, pela linha, pela sombra, pelas cores, buscamos sistematicamente o retorno à natureza. Nunca me esqueço de quando visitei o Museu de Mineralogia de Ouro Preto e da minha sensação, ao ir embora de lá, de inutilidade da arte. As formas atingidas pelo tempo sobre aquelas matérias primas eram a prova da declaração de Flusser. E todo documento de cultura parece ser o legado da inveja do homem diante da natureza.
A natureza que não erra jamais. No máximo ela segue um curso que nos ameaça. A falha é exclusiva àqueles que tem a intenção de chegar a algum lugar e se perdem no meio do caminho. A própria palavra falha, quando usada para a natureza, não expressa equívoco, apenas denomina um desenho que são os nossos olhos que projetam sobre a Terra.
Será que aquilo que nos salva desta condição é o momento em que não seguimos a correnteza, o ponto onde os seres humanos são invejados pelo céu - a possibilidade do erro?
Talvez para nós, a verdade de um caminho se revele no desvio de nossa intenção e a ignorância nos leve a novas fronteiras, e o tremor das mãos nos leve às linhas dos caminhos desconhecidos, nos desdobrando possivelmente naquilo que o físico Mário Schenberg chamou de realidade paralela.
Será o retorno ao desenho o retorno ao herói? O traço inicial da formação de uma sociedade mais conectada com seu desejo?
As pessoas desenham pouco, não por não serem capazes de fazê-lo, mas por terem perdido o desejo. E por temerem a dor desta descoberta, a dor o início, a dor da infância, a dor do herói. O desenho revela a fragilidade do conhecimento, da técnica, o medo do aprisionamento levado ao nível zero do conhecimento.
Por isto, é compreensível a fuga do desenho.
Antes da palavra delineou-se o impulso de um gesto primário.
Imagino os olhos de Deus e dos homens se abrindo, não necessariamente nesta ordem, antes de se encontrarem com o verbo; eles teriam visto as formas delineadas pelas folhas ao vento, pela água na encosta, pelo risco na parede, e teriam quiçá descoberto em si mesmos uma outra intenção, tão oculta quanto perigosa.
Em princípio era o desenho?

Beijos esfumados,

Fer

(imagem: desenho de Fernando Chuí e Marcia Tiburi)

segunda-feira, novembro 27, 2006

Milagres

..
Jantei o núcleo da Terra
...
Por entre as paredes maleáveis
de minha fortaleza
tive visões indescritíveis
prévias do inverno dos espíritos
onde desemboquei
escorrendo como a lava
que vinha junto
...
Menos diáfano
Latejei
E pari meu grito
.
(Chuí, 1997 - Fresta I)


O desenho e o poema acima voltaram-me à memória pois o fim-de-semana deu à luz a duas notícias celestiais.
Nasceu João, o filho do Guima, meu grande amigo e parceiro musical. Ele e Kika, a mãe, estavam reluzentes. João é lindo.
E o Bigatto, meu amigo há dezessete anos e também personagem muito presente nas minhas crônicas e HQs deste blog, acaba de engravidar, juntamente com Marianita, é claro, sua esposa.
Isto sem falar no Danilo Monteiro, outro ex-Dirty Darling, parceiro de sons e diálogos cancionistas, que também espera seu pimpolho para muito em breve.
Quando nasceu Vitório, filho de Davi, um outro amigo antigo, eu compus a canção cuja letra vai logo abaixo. É a minha saudação a estes seres inacreditáveis que nos lembram que a boa vida é feita para amar, se ligar e seguir bravamente.
Confesso que fiquei tocado por estas duas notícias tão divinas e nasceu em mim um desejo doce de beber do mesmo milagre.
Marcia só assobia.

DENTRO DO ESPELHO

DENTRO DO ESPELHO
TEM OUTRO MUNDO
TEM OUTRO MUNDO NO ESPELHO DO ARMÁRIO
E ESSE MUNDO É IGUAL AO SEU
SÓ QUE DO CONTRÁRIO

DENTRO DO RÁDIO
TEM UMA MÚSICA
TEM UMA MÚSICA NO RÁDIO DA COZINHA
E ESSA MÚSICA É TÃO BONITA
QUE ACHO QUE ELA É MINHA

MENINO LINDO
SEJA BENVINDO
VENHA QUE O MUNDO QUER BRINCAR
JÁ, JÁ O SOL VAI APARECER
PRA VER VOCÊ BRILHAR

DENTRO DO CHÃO
TEM UM PORÃO
TEM UM PORÃO BEM ESCONDIDO LÁ NO CHÃO
E LÁ TEM TUDO QUE DÁ PRA CABER
NA IMAGINAÇÃO

DENTRO DO CÉU
TEM AS ESTRELAS
TEM TANTA ESTRELA
EU POSSO VER DAS JANELAS
E ELAS BRILHAM NUM DESENHO TÃO LINDO
VEJO VOCÊ NELAS
...
MENINO LINDO
SEJA BENVINDO
VENHA QUE O MUNDO QUER BRINCAR
JÁ, JÁ O SOL VAI APARECER
PRA VER VOCÊ BRILHAR

sexta-feira, novembro 24, 2006

Wow, The Dirty Darling! - Crônica de uma Banda de Garagem IV


Se você fosse minha

If you were mine

I would shot you down

If you were mine

I would kiss you

People think I´m crazy

They said you´re gone

but you are here by my side

Dead wearing your leather boots

Oh, baby I thought that you were so cool

Oh, baby I thought that you were so good

But You

You are so Dirty, Darling

You are so Dirty, Darling

(DD, 1990)


If you were mine foi um dos primeiros rocks do Dirty Darling.
Um riff de guitarra e uma progressão de quatro acordes básicos trazidos pelo Danilo, uma letra em inglês - toda banda de rock começa a compor na língua do colonizador, é claro - cantada/falada pelo Bigatto e algumas alterações na forma feitas por este que vos fala.
A letra, se traduzida, diria "Se você fosse minha/Eu a jogaria no chão/Se você fosse minha/ Eu a beijaria."
- Essa música vai ser o carro-chefe do nosso primeiro disco! Nosso hit! - bradei eu, sonhando alto, no final do ensaio.
Curioso, o tempo presente em uma banda de garagem costuma ser conectado ao tempo futuro.
O desejo de constituir obra, tocar bem, gravar discos, fazer shows, fazer sucesso. Não há nada mais intenso do que o momento em que se deseja algo com muita força. Se for um desejo coletivo então, nem se fala. É como quando um casal se apaixona terrivelmente e passa a se projetar no tempo, pensa em construir a vida, pensa em criar filhos, pensa inevitavelmente na eternidade. O presente se torna luminoso como nunca pela sensação de poder se condensar numa coisa só com o futuro. É como numa banda de garagem. Só trocam-se as declarações de amor eterno pelos planos adolescentes de sucesso, trocam-se as noites de amor sem fim pelas tardes divertidas de ensaio. A banda de garagem se norteia pela ponte imaginária que dá passagem para os grandes shows que acontecerão, os discos que serão gravados, a obra que influenciará multidões, o reconhecimento da crítica, o sucesso, o sucesso.
O Dirty Darling também vivia ancorado ao futuro, mas provavelmente a um outro futuro.
A gramática nos explica que existem dois futuros, aquele que ainda virá a acontecer e um outro que acontece em um universo paralelo, o que somente poderia vir a ser - o futuro do pretérito. O DD possuía integrantes pouco alegres, pouco arrojados e mau humorados, assim não haveria de se esperar um grande otimismo daquele círculo de rebeldia discreta. Mesmo quando a matéria viva era o sonho, nos protegíamos nesse outro futuro, que traz a idéia de um lugar protegido pelo ceticismo.
A letra continuava com "As pessoas pensam que estou louco/Eles dizem que você se foi/Mas você está aqui ao meu lado/Morta com suas botas de couro(...)". Na mais pura tradição romântica, amávamos a mulher morta. O sucesso para nós vinha na figura de um amor inatingível. Sonhávamos intensamente, para dentro do limbo onírico.
Tocar nosso som era como se tivéssemos a plena consciência da lógica estrutural do mercado ao dizer à tão sonhada vida de rockstars: "Se você fosse minha/Eu a beijaria/ Mas você/ Você é tão suja, querida".
O nome da banda não veio da música, o refrão é que surgiu do nome da banda. O nome em si veio de um diálogo de um filme pornográfico, onde o sujeito diz - em contexto cênico que prefiro omitir aqui - para a moça "You are so dirty, Darling".
Era disto que se alimentava o DD, da cultura pop marginal, dos filmes sujos às bandas desconhecidas. Pois não houve jamais os grandes shows, os discos, tampouco o reconhecimento público - nada era público. E se não havia nada público, tudo ali era pessoal. Nosso sonho era coletivo e pessoal.
Esta constatação torna evidente para mim hoje uma verdade: o sonho é uma entidade viva em si para cada um e para todos, e não uma mera primeira etapa da realização de um projeto claro. Pois que, mesmo quando ele parece se realizar, nada é como se imagina; e mesmo quando tudo parece dar certo, nada acontece como o premeditado em nossas mentes.
Ou seja, mata-se um sonho no momento em que ele se realiza.
E para nós, que não tínhamos realmente a crença em nosso desejo, ficava nítida sua importância. Este desejo era a nossa melhor qualidade, pois o que há de mais belo em uma pessoa é aquilo que ela mais desejaria ser, se pudesse.
Aquele sonho que não se realizaria fundou nossa identidade.
Na última fase da banda, o Bigatto adquiriu em uma liquidação um calçado, um genérico do All Star, que nos levou a uma música nova, esta já em português, que dizia "Eu comprei um tênis/ Um sapato como eu/ É da marca RockStar".
Rock Star para nós nunca passou da sola de borracha ao rés-do-chão.
Dizíamos Se você fosse minha, nunca Quando você for minha.
O tempo presente do Dirty Darling sempre foi o futuro do pretérito.

(continua...)

quarta-feira, novembro 22, 2006

Diálogo sobre o Desenho III


Fer,

O aspecto primeiro enunciado na sua carta é o que mais me chamou a atenção diante da sua vasta teoria que eu gostaria mesmo de poder discutir. Infelizmente não será no curto espaço desta carta, mas nas seguintes quando teremos retomado muito do que ali ficou implícito, para que se torne explícito.
Talvez seja o efeito de minha leitura de Vilém Flusser que escreveu vários textos sobre desenho, estou interessadíssima na questão semântica e mesmo etimológica que envolve o desenho. Vc menciona um dado essencial: eu-desenho, como se o desenho carregasse o eu de cada um e o definisse numa folha de papel, quando desenho, desenho-um-desenho e isso faz nascer a obra, mas ao mesmo tempo, quando sou eu-que-desenho sou eu que nasço da coisa que criei. Para usar um “lacanês” válido: me torno meu significante, mas mais que isso, vou-junto do significante que crio: sou o significante.
Todo desenho, neste aspecto, é também explicado pela boa teoria de Marx de que afirma que o homem é fruto do seu trabalho, sua obra. Sorte daquele que, num mundo que virou máquina e virtualidade, ainda desenha com carvão.
Tento há tempos especializar-me em grafites (tento aprender as técnicas da gravura pelo mesmo motivo: praticar o “memento” de um “fóssil”, como se eu pudesse contribuir na história natural do traço como elemento da preservação do que está por ser extinto).
Gostaria aqui de mencionar o texto “Acerca da palavra desenho” de Flusser pela abordagem etimológica e semântica que introduz e que, a meu ver, não foi pensada até hoje.
Ele começa dizendo que em inglês design é tanto substantivo como verbo. Sendo substantivo significa intenção, plano, propósito, meta, conspiração malévola, conjura, forma, estrutura fundamental, mas relaciona tais significados com “ardil” e “malícia”. Como verbo, diz-nos, significa tramar algo, fingir, projetar, conformar, proceder estrategicamente. Depois menciona a latina signum e o alemão zeichnen. Desenhar significa ent-zeichnen, ou seja de-signar.
Com tudo isso o que ele quer é entender, semanticamente, como a palavra chegou ao seu significado atual.
Claro que Flusser está pensando mais em design (como desenho estratégico) do que no desenho como expressão da vida (aquilo que precisamos reservar) como buscamos discutir aqui, mas a pulga atrás da orelha que ele nos traz não pode ser esquecida. Comento isso, porque além de minha confiança no pensador Flusser, vejo que é o primeiro texto (dos escassos que existem sobre o tema) que me faz duvidar de algo implícito no desenho.
Ora, o que Flusser faz é usar a etimologia e a semântica para mostrar um aspecto da prática e também da instituição desenho que envolve o que ele denomina um contexto de “ardis e malícias”. E, segundo ele: “o desenhista é um conspirador malicioso que se dedica a fazer “trampas” (como li em espanhol, pois não achei o texto em português não sei se esta é a palavra original) ou “enganos”. A tais palavra ele relaciona as palavras máquina e mecânica próprias do universo de engenheiros e designers, bem como a palavra grega techné (ou técnica) e a palavra latina ars (arte) e a palavra alemã Kunst (arte, mas que carrega a etimologia do verbo Können, poder fazer e conhecer) e outras que, no desenrolar de nossa conversa, posso até trazer à tona. Por enquanto, gostaria apenas de colocar em cena este “engodo” presente no “desenho”.
Para Flusser, a cultura que conheça sua função de “embusteira” em relação à natureza que ela sempre engana, dará um caminho melhor para si mesma. O desenho está no fundamento de toda cultura, assim como você mesmo disse, estar na base de toda subjetividade nascente (desenho logo êxito, na sua apropriação do cogito cartesiano).
Para Flusser, é pelo desenho que deixamos de ser meros mamíferos e nos tornamos artistas livres e, além disso, deuses nascidos do artificial.
Ora, é o artifício que está na base do desenho. Sempre pensei o artifício, a ilusão como num trompe-l’oeil (uma desenho para iludir mesmo, como num escorço), um desenho que “parece fotografia” como algo que não teria problema algum. Em outras palavras, a percepção de Flusser me deixou assustada, serei eu uma “enganadora”. Mas se me torno o que desenho, torno-me embuste, engana-olho, eu também?
Engano quem? Por que quereria enganar? Se o design faz isso, faria isso também o nosso desenho?
Apenas proponho mais uma pergunta neste curtíssimo espaço. Devo ainda, ao analisar seu texto, orientar minhas palavras como perguntas, já que vc colocou diversas questões que me obrigam a pensar.
Um beijo,

Marcia

(imagem: desenho de Marcia Tiburi)

domingo, novembro 19, 2006

Memórias de um Sábio

Vivo dentro de mim
E vive dentro de mim uma guerra
Entre o mundo de dentro de mim
E o outro
[poema do livro Memórias de um Sábio]
.
Dedicado às queridas Rafaela e Harumi
.
Quando eu tinha catorze anos eu comecei a escrever poesia.
Desta imprudência surgiu um pequeno livro amarelo que serviu de abrigo para os meus versos até os dezessete anos.
O mais incrível era o título que abria esta peça: Memórias de um Sábio.
Não faço idéia do que me moveu a batizar de forma tão inapropriada aquele caderno de anotações poéticas, posto que eu era um mancebo imberbe entre acnes e, além de tudo, não havia ali o menor registro memorial da minha vida daquela época. Sem sinais de fatos ou pensamentos ocultos. Sem pistas das paixões ou das revistinhas proibidas. No entanto, talvez eu possa especular o porquê de tal infâmia imodesta.
(Como eu não sei mais realmente quem era aquele garoto que escrevia no caderno amarelo, sinto-me à vontade para citar e pensar seus versos, sem constrangimentos egóicos ou seja lá de que natureza...)
Quando se é criança costuma-se perguntar tudo e, mais ainda, adivinhar tudo. Em contrapartida, na adolescência - esta invenção moderna - temos menos vontade de perguntar e passamos a preferir a descoberta solitária das coisas e, num segundo momento, a expressão de nossas fundamentais idéias ao mundo.
Cerca de 400 anos a.C., Sócrates marcou a história de pensamento ocidental com seu famoso slogan "Só sei que nada sei". O primeiro poema do livro diz:"Às vezes caminho muito/por caminhos já caminhados/ Não chego a lugar nenhum/ onde todos me esperam". Uma espécie de releitura Socrática, algo como "Só sei que ninguém sabe bulhufas".
Quando se escreve um diário ou mesmo um romance a partir de lembranças do passado, os fatos parecem absolutamente relevantes para a compreensão de tudo. A poesia resgata uma outra forma de memória e também uma vertente menos comprometida da sabedoria. Funciona em um outro registro, o de uma parceria com o universo do inconsciente coletivo. Assim, os fatos tornam-se desimportantes, sendo que a memória é afetiva e alegórica - pouco interessa de que vida se está falando.
Para além da parceria com o inconsciente, há no livro minhas primeiras parcerias com Menezes, meu pai. Uma delas diz: "Idiota é quem aponta a estrelas e olha o dedo/ Mas não lhe dêem uma faca: se olhar as estrelas/Aponta o dedo/ Ou fura o único olho/ do Rei". Memórias familiares.
Tem também uma série que se repete ao longo do livro denominada como Frases Polidas. Escritos como "A loucura é a última fase da perfeição" ou "Quero encontrar alguém com quem eu possa ficar em silêncio à vontade". Memórias da ironia. Ou do desejo de amar.

Homens povoam o deserto

Homens que não sei
Em locais que não creio
Em mim
Eu nem me conheço

Homens povoam o deserto
o deserto dos espíritos
e o desejo
de não mais desejar

Homens constróem o futuro
e a paz sangra atrás da porta
E ladra a hipocrisia
E morde a estupidez

Estou cheio de desertos

[poema do livro Memórias de um Sábio]


O memorial é a busca do aconchego na ilusão de uma vida que se imagina ter vivido. Imagino que o insólito título tenha vindo da maneira que acabei encontrando para negar o que eu era. O adolescente possui uma coragem temperada de medos que lhe dá uma grande vontade de desabafo. Este título devia ser o desabafo de quem não tinha medo da verdade, algo como "Só sei que tudo sei!". Quando a única certeza da vida é o seu fim, a sabedoria sempre será uma ilusão. Assim como as memórias meramente factuais.

Esta é minha saudação àquele rapazinho que escreveu Memórias de um Sábio, por quem eu tenho hoje imenso carinho, e a quem não importava a completa ignorância para declarar sua poesia, sua sabedoria.

E àqueles que, nesta fase da vida, já têm o suficiente dela para viver, amar e morrer.

Amor
que me ensina a ensinar
que me ensina a ensinar a ensinar
E por entre os vãos da desconfiança
Acho minha parte esperança
Acho só
Não entendo
[poema do livro Memórias de um Sábio]

(Imagem: Folha de rosto de Memórias de um Sábio)

quarta-feira, novembro 15, 2006

Diálogo sobre o Desenho II


Mar,

Desenho. Em português a palavra remete ao verbo na primeira pessoa do singular, em tempo presente. Eu desenho um desenho. A nova configuração cósmica ao alcance da mão. O nascimento da alma a partir do gesto. É como se a maneira que cada pessoa possui para se expressar pela ação de seu corpo pudesse ser concretizada no espaço-tempo de uma folha de papel. Ou na areia, a delineação preguiçosa realizada com um graveto, um dedo ou a mera e efêmera forma registrada pela passagem das ondas do mar. Todo desenho é o legado de um sopro.
O ato de se fazer importante o suficiente para se responsabilizar pela interferência abrupta no território neutro de uma folha de papel sulfite deve ser o primeiro passo para a grande transformação na forma de um ser humano notar o universo ao seu redor.
O desenho é o gen do pensamento; é o que vem antes, a vontade se antecipando ao desejo.
O desenho é para o pensamento estético o que a voz é para a música. O início que, se recalcado, apenas aguarda o eterno retorno.
Deve ser por isso que Leonardo da Vinci, desenhista, músico e cientista, dizia que o desenho era a grande filosofia. A redescoberta desta voz deve vir pelo risco, ou seja, pelo traço. Um desenho só ocorre quando o olho o revela. Desenho(olho), logo existo. É, como disse Oscar Wilde sobre a simplicidade, "o último refúgio do complexo". E o refúgio é o lugar seguro para onde vamos para nos protegermos, para descansarmos e traçarmos os novos planos-mestres. Será o desenho a toca do nosso bom lobo?
Sinto, nesta manifestação tão primordial, o germe da revolução. Penso no que pode haver de político neste ato quase pueril de se registrar em linhas e sombras um desejo.
Pois o desenho, ao contrário do que pensam muitos, não é uma ação das mãos, é uma ação do olho humano. Não é questão de coordenação motora, mas de aprimoramento do olhar. Por isso podemos ver o desenho das colinas, dos prédios, da tempestade, do fogo.
Um bom exemplo é olhar as nuvens. Os bons desenhistas enxergam mais formas do que os maus desenhistas. E não existem os não-desenhistas, apenas os que já se recusam a trabalhar.
Talvez seja esta a tarefa do desenho/desenhista dentro da nova ordem: redescobrir os desenhos inscritos nas entrelinhas da percepção e ajudar o mundo a enxergá-los. Como quando você vê no céu uma grande boca engolindo um dragão branco e mostra ao outro ao seu lado que, após alguns instantes, lhe diz "puxa, não tinha percebido, está ali e é incrível".
Desenhar é gerar metamorfose a partir da visão; a física explica que o olho, no momento em que enxerga o objeto, modifica-o. Observe-se que o desenho não serve ao belo exatamente, mas sobretudo ao corte; todo traço de giz no papel é um corte de gilete na estrutura, um grito silencioso de horror. Como o gesto das palavras ilegais pichadas nos muros urbanos em letras novas. Pois o silêncio não é ausência, mas estratégia.
O olho, ao criar o desenho, se revolta. Toda revolução é a reinvenção do olho humano.
As pessoas desenham cada vez menos, porque a vida vai esfacelando aos poucos todos os instrumentos de reflexão. Como em sua experiência com a faculdade, assim como a minha, a prática institucionalizada pode vir a comprometer o desejo e a sensibilidade. Sou, claro, favorável a novas políticas do desenho e da educação do olho.
Mas agora eu lhe pergunto cruelmente: de que formas o desenho, no mundo das altas e velozes tecnologias, rituais eletrônicos e vistas calejadas, poderia vir a ser estopim para mudança ética e política? Digo, como isto pode hoje tocar efetivamente a sociedade. Ou a sua idéia de revolução não atravessa a estética? Ou a estética, que se pretende política, não atinge sequer a ética?
(Ação política, individual; coletiva, inconsciente.
Desenho, Eu)
Beijos de carvão,

Fer


(imagem: desenho de Fernando Chuí & Marcia Tiburi)

terça-feira, novembro 14, 2006

Diálogo sobre o Desenho I - por Marcia Tiburi & Fernando Chuí


Fernando,

Há dias prometi escrever a você sobre o desenho desde que conversamos sobre esta possível troca de idéias. Vou tentar expor meu pressuposto para iniciar esta conversa: meu simples gosto pela coisa e mostrar o quão complexo isto pode ser e como esta afirmativa sobre minha percepção pessoal com o desenho, possui um lado político e ético que pode tocar a todos nós. Trata-se do ético e político que está sob o véu de toda estética. A ação, o modo de ser que a define, que está por trás de toda aparência.
Pois, Eu desenho, Tu desenhas, Nós desenhamos, ora todos desenhavam e muitos perderam o vínculo com esta forma de expressão seja porque foram educados para esquemas, ou alfabetizados com certo recalque das funções expressivas, seja porque nossa cultura não valoriza este trabalho com o traço. Mas além de eu, tu, nós, há “Eles” que “desenham, hoje”. Quem são eles? As crianças, os estudantes, os ilustradores, os chargistas, e alguns apaixonados como nós que não profissionalizaram sua arte. Tomo este tema pensando em todas estas pessoas, além de nós. Suspeito que a relação com o desenho seja a mais ancestral relação que uma pessoa pode ter com a representação e se ela permanece, companheira da vida de alguns e trazendo-lhes tantas alegrias (infinitas e minimalistas ao mesmo tempo), por que outros se separaram desta possibilidade?
Além disso, lembro-me como a faculdade de artes, quando eu fazia meu bacharelado em desenho, foi desestimulante. Fiquei pensando, por mais artistas que fossem os professores – e não quero deixar nenhum tom de queixa ao que vou dizer – faltou-me sempre uma introdução ao desenho que me colocasse junto com o que é próprio ao gesto de desenhar: o gesto de pensar como ato de criar conceito por meio de traços.
Por isso, a filosofia sempre me pareceu mais instigante, porque eu via nela a construção de conceitos que o desenho também fazia, mas de modo explícito.
E, para começar nossa conversa, pergunto: podemos dizer que desenhar é pensar? Digo pensar como um modo qualificado de olhar e ver. Você considera que este vínculo entre filosofia e desenho tem sentido? Não seria a filosofia uma explicitação do que no desenho é apenas implícito?
Um mundo onde as pessoas desenhassem mais, como se dançassem mais, ou cantassem mais, seria um mundo melhor? Você acha que esta preocupação é muito ingênua?
Um beijo,

Marcia

(imagem: desenho de Marcia Tiburi)

domingo, novembro 12, 2006

Canção sobre um Diálogo V - Manifesto da Canção de Ninguém


Caro D.

Perdoe a minha demora a responder. Isto se deve ao fato de as suas questões exigirem tempo para reflexão e, com os shows e tudo mais, só pude fazer isto agora. Bom, vamos à lida.
Acho importante ressaltar que, quando se fala da morte da canção, trata-se da morte de uma certa forma de canção, que se ausenta cada vez mais do grande mercado. Faz sentido, pois a música popular surge, assim como o cinema e outras artes modernas, vinculada ao consumo de massas.
Desta maneira, é preciso se definir ou se redefinir esta tal canção que esmorece, para que ninguém se afaste da claridade da discussão.
(Ligue o rádio ou a TV, permanece vivíssima a canção-chichê)
Conceitualmente, a canção é aquela breve composição para canto acompanhado de instrumento, ou até desacompanhado. Esta modalidade musical vem desde a remota Antigüidade, atravessando toda história da música, do canto Barroco acompanhado do Alaúde, passando pelos românticos e impressionistas até aportar no século XX, na fusão cultural que você falou bem em seu texto. Sob o ponto de vista formal poderíamos pensá-la como uma pequena peça onde se apresentam, em geral, uma forma A sucedida (ou não) de uma forma B, preparação para o refrão que viria a seguir como a forma C. Outra maneira de se pensar a canção é um certo tipo de canção, aquela mais lenta e de harmonia complexa, como se vê na MPB em músicas como Luíza de Tom ou Beatriz de Chico e Edu Lobo.
Estas definições dizem respeito à semântica desta palavra e não encerram a questão, mas servem para deixar claro que não é sobre qualquer forma de canção que debatemos aqui, que não é sob tais prismas que buscamos a reflexão sobre o gênero.
Por isso, penso que temos de definir de que tipo de canção tratará este diálogo; ou melhor, sob que enfoque lidaremos com estas canções. Ou mesmo se deveríamos tratar aqui da canção.
(Pois que, às vezes, precisamos fugir para outro hemisfério para compreender o nosso próprio mistério)
Tratamos de composições que trazem o quê? A crítica de seu tempo, de sua época, de sua própria estética? Um pulso que canta para seu povo sob uma linguagem que não ignora seus antepassados, em uma metalinguagem que traz em si o germe de sua auto-destruição.
As tais “baixa” e “alta” culturas podem retornar para suas moradas acadêmicas e dar lugar a um mesmo questionamento, sendo que a crise da chamada pós-modernidade não atinge apenas a música popular; a dita música erudita já não dita nada; a contemporaneidade vive em crise, não sabe pra onde ir, nem constitui mercado, mal encontra espaço nas academias.
Ou seja, talvez a questão seja bem maior do que a de nosso umbigos cancionistas, buscando guarida afetiva na formação de um novo público.
Eu lhe devolvo a questão: o que faz da canção-idéia algo tão indispensável?
Você me diz que precisamos de autores que se encarreguem da missão cancionista, porém, continuo fiel à idéia de que não precisamos dos novos nomes, mas das novas estéticas.
Nosso tempo é dependente químico das autorias, é fato; Ele precisa de nomes definidos, como uma revolução que precisa de heróis. Não obstante, é somente para consumo das massas.
A rigor, o que acontece de mais importante não é a obra de um autor específico, mas a obra de um grupo que representa e forja uma época e um estilo(é verdade que algumas vezes a obra de um estilo se confunde ou se resume à obra de um só autor). Com isto, respondo aqui à questão da Márcia sobre se a morte da autoria não seria o primeiro passo no sentido da morte da obra. Penso de outra forma: a obra poderia ser, num mundo politicamente mais evoluído, o legado de um estilo ou o posicionamento de um grupo diante da ordem estabelecida.
Assim, como compositor destas anacrônicas(aliás, como tudo hoje em dia) formas musicais denominadas canções ainda busco o manifesto da canção de ninguém.
Após o lançamento do Nunca Vi Mandacaru, refleti um pouco sobre a função social da música. Senti como uma apresentação de canções pode ser um momento bonito de comunhão afetiva, estética e até política. Não senti que havia ali um artista a ser legitimado, mas a possibilidade de ser porta-voz de um sentimento coletivo. Como se as canções não fossem minhas, fossem de ninguém.
Pois a canção de ninguém serve para cada uma de nossas vozes.
Pois a canção de ninguém não é obra de Deus.
E, com um tinteiro de lágrimas, todos podem assinar a canção de ninguém.

Abraços dissonantes,
Chuí

(imagem: desenho de Chuí)

quarta-feira, novembro 08, 2006

BrazilMaxRadio e minha "Adiccção"

Há dias, dei uma entrevista para a BrazilMaxRadio, uma estação internética de rádio para visitantes do mundo todo interessados em música brasileira. Conversei com o apresentador do programa, o norte-americano Bill Hinchberger, sobre minhas músicas e meu processo, além de cantar ao vivo no violão alguns trechos de canções. Aos que tiverem a curiosidade, o link da BrazilMaxRadio é http://www.brazilmax.com/brazilmax.cfm/id/17

É só entrar na página e clicar no link no final da página Listen to BrazilMaxRadio. Nossa conversa rola ao longo da programação da rádio.

Com Fusão Lingüística - A entrevista foi toda em inglês, algo que me fez ficar bem enrolado em vários momentos. O pior(ou melhor) foi na hora em que resolvi citar um texto do Luiz Tatit, onde diz que a canção é obra de uma dicção, e ocorreu um pequeno acidente lingüístico: a frase "The song is work of a diction(uma dicção)" virou "The song is work of addiction(vício, desejo compulsivo)".

Depois de esclarecida no ar a questão da minha prosódia dúbia(ou débil), eu ri em silêncio do equívoco da minha "dicção" e cantei ironicamente os versos "Não me Amola com esse Papo de que eu Falo Errado/Eu não me Calo/Eu crio a Língua quando eu falo".

Todo idioma é uma armadilha, você pisa em falso e detona um novo sentido, um novo acento ou um novo desejo. Como se diz no inglês prosaico, whatever...

A canção também deve ser lá obra do vício.


(foto: Bill Hinchberger and Me)

Bitcho´s IX


Gastramoris sp



Todo o tempo

novas tramas

novos jogos

novos dramas


mas a busca é sempre igual




amor e comida

.

(Desenho: Fernando Chuí & Marcia Tiburi/Texto: Luis Carlos de Menezes/Nome científico: Regina Cândida Gualtieri)

domingo, novembro 05, 2006

Carpinejar e Chuí em Canalha-Romântico


Eu contei ao Fabrício Carpinejar a frase de um filme do Hal Hartley. Ele emparelhou duas cadeiras diante de dois computadores. Meia hora depois tínhamos "Um Homem Precisa", canção-poema presente no nosso espetáculo "Poesia Explícita ao Vivo", batizado carinhosamente de "Canalha Romântico" e apresentado anteontem em Porto Alegre, super bacana. Obrigado pelo afeto e pelo ímpeto, Fabro.

Um homem precisa

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

Correr atrás de mulher
Que não mais te quer
Chamar a puta de santa
Chamar a santa de puta.
Rezar para que ela volte
Beber para que ela venha
Chorar para que Deus a tenha

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

Mentir que não já não dói
Doer para dar de novo
Soprar o último fora,
Pagar o primeiro beijo,
Roubar no jogo, amar
A quem jamais te amou.

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

Um homem decente
Precisa passar
uma noite
indigente
Lembrar que é cafajeste
Pensar que pode tudo
Para errar diferente.
Um homem precisa
Ser menos que um homem
Uma vez na vida

A tragédia é uma planta na janela
A verdade é sempre apenas
Parte dela.
E não interessa.

Um homem precisa
Um homem precisa
De algo na vida
Um homem precisa
De algo na vida
Pra se envergonhar

(foto: Show "Canalha- Romântico" no Auditório Barbosa Lessa no Centro Érico Veríssimo em Porto Alegre, dia 03 de novembro)

quarta-feira, novembro 01, 2006

Wow, The Dirty Darling! - Crônica de uma Banda de Garagem III


DD e o Paganismo Sociocultural


O nome Pagão, em nossa sociedade, assume uma certa conotação ruim, algo como bastardo ou traidor. Refere-se àquela pessoa que não segue a doutrina judaico-cristã, àquele que não pratica os deveres religiosos ou não chegou a ser sequer batizado. Como eu, por exemplo. Também é assim chamado aquele que segue uma religião politeísta, que adora vários deuses. É um herege.
Aliás, o sentido da palavra herege também é interessante. É assim proclamado aquele que professa heresias, ou seja, diz coisas contrárias à ordem religiosa vigente. É o subversivo.
A rigor, é apenas alguém que tem suas próprias idéias.
Esta é a grande e saudável ilusão do rock. Ao organizar sons em pequenos ambientes como os quartos dos fundos ou as eternas garagens, a partir de muito poucos elementos musicais como instrumentos precários, uns poucos acordes básicos e uma vontade ímpar de fazer acontecer algo em suas vidas, os integrantes adolescentes de uma banda têm a nítida impressão de desvirtuarem a lógica dada pelas instituições para parir uma voz própria: fresca, nova, revolucionária.
Há muito tempo que não há revolução estética no rock, mas isto não é realmente importante. A simples idéia de imaginar-se o personagem da subversão do sistema é um movimento absolutamente modificador da alma do indivíduo.
Nós, do Dirty Darling, estudávamos todos em um dos colégios mais tradicionais e ferrenhos de São Paulo. A escola possuía uma espécie de neo-liberalismo enrustido, semente de um neo-fascismo. Para se ter idéia, recebíamos um boletim em papel verde de computador com nossas classificações no bimestre ou semestre com relação à turma e a todas as áreas. Só faltava estar escrito LOSER no verso daquelas folhas pertencentes àqueles que, como eu, não constavam entre os dez mais dedicados do grupo. O colégio era o carrasco, o vestibular era a sentença.
Para além desta questão, havia também o velho esquema xerox kitch das escolas norte-americanas das turminhas populares, dos nerds - ali bastante representados pela grande quantidade de orientais obstinados com a aprovação no vestibular - e daqueles que passavam à margem de tudo. Ali tínhamos nossa exclusão e desgostos garantidos o suficiente para brotar em nossas vidas o espírito de subversão.
Somente deste segmento marginal poderia surgir uma banda como o DD.
Bom, falando assim, parece até que éramos todos uns alunos lamentáveis. À exceção da minha singular pessoa, todos os outros integrantes do grupo eram bons alunos. O Bigatto, a voz atonal do DD, criticava a tudo do alto de seu posto de primeiro aluno da área de humanas. É de um prisioneiro da estrutura que pode surgir o mais genuíno desejo de ruptura. Era Adorno invejando James Dean. Sentando na primeira fileira da classe, com os pés batucando Little Richards embaixo da mesa.
Eu e Bigatto flertávamos com o germe dos DD ao cantarmos, entre uma aula e outra no corredor do colégio, um discretíssimo Be-Bop-A-Lula, o velho clássico de Gene Vincent. Mais tarde, descobrimos outros hits de corredor, como Turn, Turn, Turn dos Byrds ou Deixa Eu Te Amar de Agepê. Cantávamos em voz baixa, ecléticos, heréticos, politeístas.
Em meados de 1990, quando eu já começava a estudar violão clássico e passava pelo processo de troca de suporte, do espaço do papel ao tempo musical, um fato fez o primeiro passo para o surgimento da futura, revolucionária e inotória banda, The Dirty Darling.
Ao adentrar nossa sessão de hits de corredor a música Take a Walk on The Wild Side de Lou Reed, pedi a Biggets que me gravasse uma fita cassete com uma coletânea de seus anti-Hits. Estas canções transitaram intensamente por mim e Bigatto, por Mamel, por Danilo Monteiro, por Cristiano Ricardo.
Naquele período, um certo grupo de burgueses virgens tomou conhecimento sobre as putas, travestis e viciados de New York. Descobrimos que poesia também vinha do esgoto, pra além das aulas de redação. E o pior, descobrimos que Lou Reed tinha sofrido terapia de choques elétricos antes de deixar o piano clássico para se dedicar à sua tosca guitarra elétrica.
Kill your Sons, ele dizia, pagão.
Parindo ali mais alguns dos seus pobres bastardos.

(continua...)

domingo, outubro 29, 2006

Bitcho´s VIII


(Menezes e Regina vieram em casa pra celebrar esta maravilhosa eleição.
Desse encontro surgiu mais um dos nossos Bitcho´s.
A Marcia me diz que o nome Bitcho´s reflete nosso desejo de sermos uns vagabundos.)


Chelonia mydas


Minha carcaça se exibe

com tudo o que há no mundo.



Erra quem pensa

que isso é poder.



É sentença.


(Desenho: Fernando Chuí & Marcia Tiburi/Texto: Luis Carlos de Menezes/Nome científico: Regina Cândida Gualtieri)

sexta-feira, outubro 27, 2006

Revista Cult - Nunca Vi Mandacaru

A Revista Cult fez uma matéria em seu site que me deixou comovido. Só posso agradecer e muito à Daysi Bregantini pelo apoio no lançamento deste trabalho.
Para os amigos que quiserem ler o artigo, o link é http://revistacult.uol.com.br/website/site.asp?edtCode=E277DF61-D718-4085-81BD-02A58A04F04C&nwsCode=DC1010F7-431B-4164-BBF9-5317E319505F, ou podem achar no site da Cult (http://revistacult.uol.com.br/website).
E deixo aqui um abraço especial ao Marcão.

(Imagem: foto do show de pré-lançamento do cd realizado em agosto da Livraria da Vila)

Fabrício Carpinejar e Fernando Chuí - Poesia Explícita! em Porto Alegre


Bah!
Dando continuidade aos shows, farei com meu parceiro de letras, canções e HQs, o querido poeta Fabrício Carpinejar, a nossa primeira apresentação pública juntos. Será na Câmara do Livro de Porto ALegre, dia 3 de novembro, próxima sexta à noite.
Fabro e eu dividiremos o palco, ora nos revezando em declamações e performances musicais, ora em inéditos duetos unindo as duas formas, apresentando textos e canções de nossos trabalhos mais recentes, o livro de crônicas "O Amor se Esquece de Começar", de Carpinejar, e o meu "Nunca Vi Mandacaru", em um diálogo de obras.
Entrelaçados pela poesia fundada a partir deste encontro de obras, apresentaremos momentos desta fusão estética, como as canções "O Amor Esquece de Começar", de Chuí, inspirada no livro homônimo; a canção "Telhados", feita sobre poema do poeta; "A Bela e a Fera", composta em homenagem ao extinto programa apresentado por Carpinejar da TV Unisinos; e "O Homem Precisa", a nossa inaugural parceria poético-musical.
Será bom barbaridade, tchê.

(Imagem: Carpim by Carpinejar & Chuí, 2006)

quinta-feira, outubro 26, 2006

Nunca Vi Mandacaru - Ao Vivo!


Eu me esqueci dos agradecimentos. Eu me esqueci de divulgar o site e o blog. Mas foi tudo muito perfeito.
Como havia prometido a pessoas queridas que não puderam vir ontem por serem de outros estados, vou contar aqui um pouco do que se passou na apresentação do Crowne Plaza.
A banda (formada por Humberto Zigler na Bateria, Igor Pimenta no Baixo e Guima na guitarra) foi absolutamente competente; concisa e também exuberante. Tivemos pouco tempo de passagem de som, o que me preocupou, mas na hora que começou, tudo se harmonizou perfeitamente. O Luís Bueno, violonista do super Duofel, me fez um comentário interessante sobre a sonoridade nova que percebeu por conta do posicionamento dos músicos no palco, onde a guitarra estava um pouco deslocada do restante da banda.
Os convidados foram um show à parte. Guappo fez crescer lindamente a canção Quero Amanhecer ao Seu Lado com sua gaita encantada. Meu parceiro Danilo Monteiro foi comovente em sua intervenção no Funk Urbano com sua declamação de Esta Noite Outro Nome Tem a Chuva. A linda Rita Maria trouxe drama e energia à Não me Amola. E o artista plástico Luis Birigüi grafitou, ao longo da noite, um painel sensacional inspirado pelas letras de Drops, Funk Urbano e Não me Amola. Todos foram absolutamente elogiados após o show, cada um deles.
E o público. Um público tão belo que, se a minha miopia não me permitia olhá-los em detalhes, meu peito parecia sentir como se respirassem junto com o pulso e a freqüência da música.
Recebi elogios que me emocionaram, algumas pessoas disseram ter chorado. Tomei a liberdade de postar neste blog alguns comentários que recebi por e-mail(faço isto para deixar guardadas para mim estas palavras sobre este momento, pois e-mails se vão com o vento, afinal...)
Agradeço a todos que encheram o Crowne Plaza na noite de ontem. À minha família e aos amigos leais, aos muitos e já novos amigos ali. A Zyun, Amelinha e a todo o pessoal do Projeto Fênix que veio prestigiar e ainda filmou o show. A Rodrigo Araújo na constante força. À queridíssima Mel Lenz e a Thiago Guimarães pela incrível competência e carinho na reta final.
Especialmente à Marcia, pra quem dediquei o CD e este show.
Ontem foi uma noite realmente incomum para mim.
O Mandacaru é de pedra. Está vivo.

(imagem: foto de 25/10/06 - Crowne Plaza)

segunda-feira, outubro 23, 2006

Bitcho´s VII


Amigos, não tenho arranjado tempo para escrever e postar aqui por conta dos ensaios e preparativos do show de quarta no Crowne(vejam post abaixo), mas nesta "fresta" que encontro deixo registrado neste blog mais um da série Bitcho´s.

Acarus alatu


Se não me iludo

com o que vejo


o perigo não está no ferrão





mas no desejo


(Desenho: Fernando Chuí & Marcia Tiburi/Texto: Luis Carlos de Menezes/Nome científico: Regina Cândida Gualtieri)

quinta-feira, outubro 19, 2006

Work in Progress


(Esta é uma letra que escrevi ontem; surgiu assim de "bate-pronto" quando eu olhava o céu antes de sair para dar aula. Vem da reflexão de que a solidão é somente uma invenção nossa, a ilusão de que estamos sós, tentativa vã de nos desintegrarmos do todo. Ainda não está concluída nem defini a música, mas aceito sugestões. Se estiver suficientemente boa, penso até em tocar na quarta lá no Crowne. O título veio de uma introdução que fiz para ela e que citaria o compositor minimalista.)

Erik Satie

Uma palavra risca o céu
Feito uma gilete
Ou uma nota longa de trompete
Um Nome Impróprio
Causando revolução
Na paisagem

Uma palavra corta o céu
Feito um canivete
Um Z, uma seta, um 7
Um som agudo
Gerando devastação
Na miragem

E é só você
Somente você
que agora me ouve
Só você
no fundo você
no fundo mais fundo de si
Só você
no fundo você
No fundo mais fundo de nós
Só você sabe
que palavra é esta
Só você é quem pode ler

Quem sabe
Eu

(Imagem: Fernando Chuí, 1997)

quarta-feira, outubro 18, 2006

Convite Obsceno - Nunca Vi Mandacaru


Lançamento Oficial! - Nunca Vi Mandacaru

Daqui a uma semana, farei o lançamento definitivo de meu novo CD Nunca Vi Mandacaru no Teatro Crowne Plaza(R.Frei Caneca, 1360), e convido aqui a todos para verem e ouvirem as músicas de meus dois discos e mais algumas versões de músicas de Ari barroso e The Velvet Underground. Tocarei com banda e tudo, além de outra seqüência do show que será mais acústica.
Ainda haverá participações muito bacanas da cantora Rita Maria; do poeta e compositor, parceiro de sons e blogs, Danilo Monteiro; e do artista urbano Luís Birigüi com seu grafite sofisticado. Ao longo da semana, farei comentários sobre as faixas dos cds que serão apresentadas no show, em busca de um diálogo com os leitores e potenciais espectadores.
E olha a mamata:
Os amigos e novos amigos leitores que me escreverem (por aqui ou no fechui@uol.com.br) confirmando seriamente a sua presença neste show terão seus nomes na lista de convidados.
Agradeço aos que nos ajudarem na divulgação desta árdua batalha da música independente!
Quem vem pro Mandacaru de pedra?

terça-feira, outubro 17, 2006

Bitcho´s VI

Gastropoda antenata

Se tens por senhor o medo

pelo sim

pelo não


protege o traseiro




e lambe o chão


(Desenho: Fernando Chuí & Marcia Tiburi/Texto: Luis Carlos de Menezes/Nome científico: Regina Cândida Gualtieri)

segunda-feira, outubro 16, 2006

Canção sobre um Diálogo IV - Direito à Preguiça

Chuift,

Não se trata da morte da canção, mas a agonia de um certo tipo de canção. Ou ampliando, a morte da ambigüidade na indústria cultural.

O fim do encontro entre as ditas “alta” e “baixa” culturas. É um troço do século XX. Acabou o mercado para isso. Pelo menos no Brasil.

Penso no Radamés Gnatalli fazendo arranjos para sambas na Rádio Nacional. Tom Jobim correndo com Villa-Lobos e colhendo Noel Rosa, fazendo parcerias com Vinícius de Morais, que antes disso era um poeta “sério”, cheio de moral, e então se tornou o poetinha. Concretismo e Rogério Duprat e Júlio Medaglia cimentando o tropicalismo, que também bebia no ébrio Vicente Celestino e petiscava Beatles. Walter Franco misturando os jõoes Cage e Gilberto e levando tudo isso às últimas conseqüências.

Arrigo Barnabé fazendo pop dodecafônico já era o último capítulo dessa agonia.

Você fala sobre o fim da autoria poder ser um primeiro passo para um renascimento deste certo tipo de canção – canção crítica, canção-idéia, ou simplesmente Ela. Minha visão é oposta.

Precisamos separar aqui a questão do direito autoral, e a existência mesma de um autor enquanto sujeito de um tempo, de uma cultura, de uma linguagem. Vou falar só sobre o segundo aspecto agora. Há muita gente hoje fazendo colagens de outros autores, sem conseguir chegar a ser um autor, imprimir uma linguagem própria, singular, a uma criação. É um troço que é tudo e ao mesmo tempo nada.

Precisamos do autor enquanto sujeito.

Se o mercado para Ela morreu, é possível que Ela também morra, porque nasceu dentro deste mercado.

Para que Ela renasça, dependemos exclusivamente dos criadores ainda interessados... enquanto sujeitos! Do esforço hercúleo de remar contra a maré na criação (compor um tipo de música que não tem mercado), e criar mecanismos para encontrar um público possível que faça desta música efetivamente um encontro.

E o que eu, você e os “novos compositores” estamos fazendo - talvez seja ainda tímido no confronto com o passado que citei acima, e quanto às demandas do presente.

Nós somos herdeiros do corpo torturado, privatizado, decapitado e esquartejado da cultura e da política brasileiras.

E agora?

P.S. Quando digo que nossa obra talvez ainda seja tímida, não quero diminuir o que fazemos. Eu choro toda vez que escuto teu novo disco. Seu realmente incrível sentido melódico e harmonioso, suas canções de tanto amor para com a criação, a estrutura enxuta e “anti-pop-espetacular”. “Uma Outra Ilha” é a canção-guia desta nossa discussão: “Luz, olha o horizonte, que maravilha/ Vem comigo buscar uma outra Ilha”

P.S.2.Um mundo em que “Quero Amanhecer Ao Seu Lado” e “Canção de Amor Para Márcia” toque no rádio parece tão próximo e tão distante. Por isso precisamos chegar ao topo da complexidade da sua criação (“Uma Outra Ilha”) e tê-lo como guia para ultrapassá-lo, para talvez chegar a um mundo em que possamos recuperar o clichê crítico dessas duas outras canções.

P.S.3. Me deixe mundo. Nós podemos mundar o mudo. A função antecipadora da arte. “Luz, olha o horizonte, que maravilha/ vem comigo buscar uma outra Ilha”.

Abraços,
D.


(imagem: desenho de Chuí)

quarta-feira, outubro 11, 2006

Canção sobre um Diálogo III - Ensaio para uma Canção


Caríssimo Danilo,
A demora na sua resposta e a própria em si confirmam a sua preguiça de serpente. Sobre a preguiça, tenho cá algumas considerações.
Recentemente, a Marcia Tiburi, em sua palestra sobre literatura e escrita, foi indagada sobre a relação entre a poesia e a filosofia, com o que ela disse, após breve pausa: o filósofo é um poeta cansado. Em outro momento, você então nos questionou se não seria por sua vez o poeta um filósofo preguiçoso.
Destas duas "elucidatórias" perguntas elaboro outras. Se pensarmos no compositor formal, que encontra suas bases em tradições clássicas, na escrita musical, na condução de vozes, no contraponto, etc, etc, poderíamos pensarmos este compositor como uma espécie de cancionista cansado?
Não obstante, o que viria a ser afinal o cancionista, um compositor preguiçoso? E qual seria a função ou a disfunção fundamental desta classe de artistas no mundo de hoje? E de que cancionista estaremos falando? Dos herdeiros assépticos da bossa nova? Das órfãs cantoras técnicas de Elis Regina? Dos pseudo-rebeldes da ala Rock? Dos seguidores dos seguidores da tropicália? E esta canção, se descolaria da música popular instrumental?
Gosto da idéia de uma música-síntese. Mas não tenho certeza de que tenhamos que chamar de canção apenas aquilo que formalmente recebe este nome.
O crítico Tinhorão define o início da música popular brasileira a partir do surgimento dos primeiros nomes, ou seja, com o advento da autoria, da obra composta de compositores nomeados pela história, em contraposição com a obra de domínio público, a música folclórica.
Eu não gosto da idéia da morte da canção.
Prefiro que morra a autoria. O que nos levaria, quem sabe, a uma nova etapa da canção popular. Estaríamos preparados para desafiar a lógica e compor sobre um não-nome, o cancioneiro de ninguém?
(Talvez a geração do Hip-hop, cujos cantores MCs anunciam sempre seus nomes a cada letra que fazem, estejam dando um primeiro passo para isso, sendo que, em termos de canção, não há autoria quando há explícita autoria. Quer dizer, como eu posso ser gravado por vários cantores com uma música em que eu digo "Escuta aqui/meu nome é Fernando Chuí")
Reitero: que morra a autoria pra que rejuvenesça a canção. E essa coisa de um monte de nomes prontos para serem reconhecidos é mesmo um tanto cafona.
Bom, camará, espero que não demore a dar o bote desta vez.
Abraços reverberados,
Chuí

(imagem: desenho de Chuí)

Canção sobre um Diálogo II - Ensaio para uma Canção


"Danilo velho, percebi agora que o verbo que usei no início da nota acima veio bem a calhar, pois eis que a palavra ensaio encontra significados que podem servir ao início deste nosso registro reflexivo. Usa-se o termo ensaio para se nomear a apresentação de um assunto filosófico, científico, histórico ou de teoria literária, caracterizado pela visão de síntese e tratamento crítico do tema em questão. Para os músicos, a palavra refere-se ao simples ato de se preparar a performance, solo ou em conjunto, para o sagrado momento do show. Pensei no que diz o Luiz Tatit, que a canção é o produto de uma dicção. O que você acha que é isso? Vislumbrei o ensaio que poderia surgir de nosso debate e já não sei se, na contagem final dos corpos, teríamos uma tese dissonante ou uma sintética canção. E aí, cumpadre?Abraço polifônico, Chuí"

Chuí,

Preguiça de escrever. Cantar é tão bom.

Paul Valéry:
“Preguiçoso, mas como uma serpente. A menor coisa extrairá dela toda a energia do sol que ela acumula em sua espera imóvel.

Há duas aparências de preguiça: uma que é espera. Outra, repouso.”

Tenho vontade de philosophar (lato senso) e escreber apenas nos momentos em que estou descansando a voz, ou com a barriga muito cheia para cantar.

Você me pergunta sobre a brilhante definição do Tatit: “A canção é o produto de uma dicção”.

Frase bonita. Evasiva, modesta.
Mas vamos às dificuldades, cantando:

“Se você tem uma idéia incrível, é melhor fazer uma canção. Está provado que só é possível filosofar em alemão” (Caetano Veloso)

“I am a student of ancient culture... Before I talk I should read a book”. (de uma canção de B 52’s)

Isso para dizer que… (Preguiça de escrever) Paul Valéry: “O fundo do pensamento não é nada – e as teorias que não resultam em processos, os quais julgam as teses – não me fazem nenhum efeito.”

(E para dizer também que não posso falar sobre a cultura arcaica da canção sem ler o livro do Tatit).

Gosto da sua idéia de ampliar a palavra ensaio lhe dando outras possibilidades em termos de processo. Ensaio para uma canção. Escrever não para entender simplesmente o que é a canção (presente e passado), mas uma reflexão provocadora de processos, que por sua vez resultem (futuro) em novas canções.

Enfim, escrever-cantar para renovar o canto-escrita.

P.S.1 Podemos pensar no Walter Franco e seu disco Ou Não, aquela da capa da mosca sobre fundo branco. Ele estava propondo o fim de um certo tipo de canção e ao mesmo tempo começando outro? Ao mesmo tempo mosca e sopa? E a mosca foi engolida pela sopa? Ou não?

P.S.2 Deus me perdoe ter citado Caetano Veloso, mas o trecho de “Língua” fala muito sobre o tipo de canção que nos formou --- as “canções-idéia” de Caetano, Chico, Tom Zé, Itamar, Lou Reed, Radiohead, Tom Jobim, Noel Rosa etc. Idéia aqui não apenas como palavra, mas principalmente como forma.

Abraços,

D.

(imagem: desenho de Chuí)

Bitcho´s V


Octopus attentus

Olhos de atenção

boca de expressão

garras de tensão

filamentos sutis

seduções e ardis
.

.

Tudo pela vida
.
(Desenho: Fernando Chuí & Marcia Tiburi/Texto: Luis Carlos de Menezes/Nome científico: Regina Cândida Gualtieri)

domingo, outubro 08, 2006

Bitcho´s IV


Homo pteris


E o monstro da razão

fez o que teve de fazer

para viver sua paixão




nasceu de novo com asas


(Desenho: Fernando Chuí & Marcia Tiburi/Texto: Luis Carlos de Menezes/Nome científico: Regina Cândida Gualtieri)

sábado, outubro 07, 2006

quinta-feira, outubro 05, 2006

O Lendário Cobra

Entre os meus onze e os meus catorze anos eu tinha um time de futebol na minha rua.
Cobra era seu nome. Do time, eu quero dizer.
Certa vez fizemos uma "vaquinha" para fazer um uniforme para o time. A quantia amealhada só foi suficiente para mandarmos gravar um pequeno C no lado esquerdo do peito de algumas camisetas brancas; apenas uma para cada um, é claro.
Eu era o caçula do grupo, gostava mesmo era de driblar e chutar para gol, porém só me deixavam jogar na defesa. Eu até que me achava hábil no ataque; no entanto, por ser o menorzinho ali tinha de obedecer aos "grandes". Ao menos tinha a sorte de termos um bom goleiro, o Cardoso, senão acabaria tendo que "catar no gol".
Eu costumava literalmente desenhar no papel as jogadas de gol e as estratégias de jogo após os treinos ou os poucos jogos "contra" que realizamos.
Jogávamos o dito futebol de salão quase todo sábado no parque Ibirapuera. Junto a mim, na retaguarda, jogava às vezes o Tuta; no meio-campo, o Paulo e meu irmão André; Daniel era uma espécie de pivô, corria todo o campo; e como centroavante, o Gustavo, vulgarmente chamado pelos amigos como Cabeção. Gustavo não tinha muito fôlego, por isso ficava plantado à frente da área adversária, quase todo o jogo, na famosa "banheira".
O Daniel gritava até ficar roxo com ele para que voltasse para ajudar na defesa e participar das jogadas estratégicas, mas Gustavo, o Cabeção, era um jogador com pouca disciplina. O gol desenhado na figura é dele, aliás, no nosso primeiro "contra", com um time de outro bairro chamado CEGE, e denota bem o seu usual posicionamento em campo.
Lembro-me bem de um mito que havia entre nós, o invencível time do Humaitá.
O Humaitá era o time campeão da região onde morávamos. Toda vez que na rua se falava nesse time criava-se no ar um certo sentimento de temor e eu me sentia um mero soldado troiano ouvindo falar das façanhas imortais de Aquiles. O Humaitá era um time de craques. O Humaitá não perdia nunca.
Se por algum momento nos gabávamos de o Cobra ser um time bom de bola, por termos jogado muito bem em algum daqueles sábados ou por puro e lúdico regozijo coletivo, aquele nome servia para nos colocarmos em nosso devido lugar: o Humaitá.
Um dia, o Daniel apareceu em casa contando que estava "agilizando" um "contra" com o time do Humaitá. Sofri um calafrio de medo e excitação. Será que eles realmente topariam? Será que o pessoal ia me deixar jogar "na Linha"? Seria um massacre?
Por mais humilhante que pudesse ser o resultado, termos um jogo marcado contra o Humaitá era como ser o time de reserva do Casaquistão e receber o convite para um amistoso com a seleção brasileira. Pra mim, jogar com Aquiles não era tarefa da estratégia ou da habilidade, mas da fé.
Sempre que alguém da turma fazia gozação sobre os chutes pra fora do cabeção, os frangos do Cardoso ou a moleza do Fê(eu, no caso), tínhamos um discurso pronto: “jogo é jogo e treino é treino, a gente é profissional”. Havia sempre um sopro de esperança de vitória, mesmo contra o monumental Humaitá.
O jogo com o poderoso Humaitá nunca ocorreu e o nosso time se dispersou nos idos de 1989. Com os anos, realizamos algumas partidas esporádicas. A última delas eu não pude me esquecer, foi em um carnaval em Laguna, praia de Florianópolis. Eu já era maior, já jogava no ataque e fazia gols. Para permanecermos em campo eu precisava converter o último chute da disputa de pênaltis. Voltamos mais cedo para casa, pois eu chutei muitíssimo pra fora, é claro. A bem da verdade, ninguém se importou muito, o pessoal queria mais era voltar pra casa para fazer a tradicional concentração alcóolica para a noite de carnaval. O Cobra já não estava mais entre nós.
Um time de futebol da infância é a prova viva daquela idéia freqüentemente abordada pela modernidade de que o todo não é apenas a soma das suas partes. O time era o símbolo de um certo momento da vida. Mas unindo novamente as suas partes em outro instante , não se concretizou.
Todavia, parece que as coisas fortes da vida descobrem estranhas maneiras de reaparecer. Quando eu participei, anos atrás, de um festival de música promovido pela rede Globo, o microfone falhou e eu cantei três estrofes sem som algum; segui a apresentação e, felizmente, acabei classificado. Contudo, o mais curioso foi que, na entrevista em que a atriz Maria Paula fez comigo, quando ela me perguntou como eu havia mantido o sangue frio para não parar o show, eu lhe disse, como que porta-voz do velho time: "você sabe, jogo é jogo e treino é treino..."
Parei por um instante para não acabar me comprometendo com o resto da sentença.
O prêmio do festival acabou não vindo, assim como o jogo com o Humaitá. Tive muitos outros Humaitás ao longo dos anos. Ainda tenho alguns, mas hoje em dia não confesso tão facilmente quais são.
Mas Cobra, só houve um.
Entre os meus onze e os meus catorze anos eu tinha um time de futebol na minha rua.
Cobra era seu nome. Do time, eu quero dizer.
A rua se chamava Noel Torezin, onde ainda mora minha mãe e a mãe do Cabeção, que hoje tornou-se delegado no interior de São Paulo.

(imagem: desenho de Fernando Chuí de 1987)